Antes de encaixar a cestinha na bicicleta e abrir as janelas para trocar o ar “calefacionado” da casa, rego as plantas da janela Sul, que no inverno conquistam poucas e valiosas horinhas de raios de sol, e as da janela Norte, menos favorecidas luminarmente, mas por essa mesma razão estrategicamente posicionadas por família e reino. Tudo pronto. Na saída, cruzo com o senhor do bigode que, diante de outro insistente e sorridente bonjour, me decepciona mais uma vez com um sonoro silêncio, e desvia o olhar. A família chinesa do primeiro andar cozinha algo de fortíssimo aroma, e a lata de lixo reciclado chega ao limite de sua absorção semanal. É um sábado de janeiro.
Os bons cidadãos de fim de semana e clientes fiéis se espantam, com uma ponta de inveja, diante da calorosa saudação gaulesa que recebo da dame da padaria da esquina. Um sorriso e um “como vai”. Suspeito ser a melhor padaria do mundo, tratando-se da melhor que já encontrei na França e sendo este o reino da massa folhada e assada com muita manteiga. O tiozinho das frutas já separa os kiwis, as bananas e laranjas – “nada de saco plástico, já sei”, ele diz, não sei ao certo se para mim ou para si próprio –, e a garota bem-vestida, acompanhada de um saudável cachorro, ocupa seu posto habitual na esquina, braços em punho, mãos abertas para o céu, como em oração, o ritual diário de seu ganha pão na porta do açougue.
Morro acima, passagem pelo parque; muitas bicicletas neste trajeto. Será por que é sábado? Por que faz sol? Não necessariamente. Há sempre muitas bicicletas, e muitos sorrisos de cumplicidade entre os que optam pelo método de transporte da moda entre os ambientalistas vigilantes. Vovós, fumantes, mães com dois filhos, mendigos, vovôs com guarda-chuvas. Todos sobre duas rodas.
Dia de bicicleta, dia de feira. E é nela que chego à minha. Para encontrar Jean-Michel, o camponês de dedos espessos que, semanalmente, traz nossos legumes e frutas. Cada um pesa o seu. “Um cesto inteiro ou meio cesto?” “Só meio”, respondo, “senão terei que dar batatas e cenouras de presente em todos os aniversários do ano!”, completo só em pensamentos. “Sete e cinqüenta, mademoiselle”, Jean-Michel me lembra, entre suas abóboras e garrafas de mel natural. Quem sabe daqui uns meses a gente começa a se cumprimentar, tal e qual ocorreu com a senhora da padaria. Não há pressa. Afinal, sábado que vem estou de volta, e ele também.
A volta para casa exige novo equilíbrio. A cestinha quando cheia muda o senso de gravidade da bicicleta, mas para baixo… já sabe. Em casa, enquanto as cenouras de orgulhar Pernalonga decantam a grossa terra de molho na pia e as verduras secam sobre o pano de prato, um pão caseiro descansa ao lado da calefação para fazer a massa crescer. Ainda faltam 45 minutos, e enquanto isso aproveito para colocar um chimarrão na cuia e checar a correspondência. Uma carta da prefeitura solicita novos documentos – mais precisos e mais inúteis – a respeito do meu estado civil, minha fonte de renda, meu visto de permanência, meus objetivos a curto e longo prazo neste país. Quanta celulose. Quanto carimbo. Quanta carta de motivação. Burocracia que se cumpre a fim de colher os benefícios em vias de extinção de um Estado maternal. Os livre-empreendedores que me perdoem, mas não deixo passar os auxílios moradia, saúde, transporte, alimentação e ainda descubro os incentivos à viagem de férias, ao retiro espiritual, à prática esportiva. Quem sabe ainda consigo deixar a declaração de próprio punho no correio esta tarde.
As verduras já secaram e o pão, devidamente recheado com nozes e castanhas, está no forno. A vizinha toca a campainha para deixar as chaves de casa, com precisas orientações sobre a quantidade de água e luz necessárias à sobrevivência de cada plantinha, e o leite, os sucos e os queijos que mofariam em sua geladeira durante a ausência são o presente de despedida. Bon voyage. “A prefeitura do quartier já instalou um posto de coleta de pinheiros de Natal em frente ao parque”, ela me lembra, e prometo, na semana que vem, deixar o seco símbolo natalino na caçamba que se enche de tristes arvorezinhas resignadas. “Aproveito também para deixar as pilhas e lâmpadas usadas no recipiente do mercado ao lado”, penso eu; “fica no caminho”.
Começa a nevar. Bem de leve. Tão leve que os flocos parecem traçar um movimento ascendente, girando, como vaga-lumes, subindo ao redor das luminárias de rua – a esta época acesos desde o final da tarde que, confusa, virou noite antes da hora. Agasalhada e com as bochechas levemente rosadas por causa do frio vento que bate no rosto em movimento sobre rodas, brinco em ziguezague sobre o asfalto encoberto. Sinalizo com o braço esquerdo para passar pelo cruzamento, atravesso a ponte sobre o canal, vejo a espessa camada de gelo onde os pássaros passeiam, caminhando sobre as águas, e começo a perder o tato nos dedos dos pés e das mãos.
Paris, para mim, é isto. Em janeiro. Meu bairro. Minha vidinha.
Aqui fora faz -7 graus Celsius. De relance, vejo um jornal repousando, esquecido, sobre uma cadeira em um café. “Franceses são o povo mais pessimista do mundo, conclui pesquisa”. Uma foto de uma cinza fila de metrô me diz sobre a greve no sistema de transportes da capital enquanto a outra mostra os centros de vacinação contra a gripe A. Penso ainda na Paris dos turistas perdidos ao redor da Galerie Lafayette. Amontoados em frente à fonte de Saint-Michel ou nas filas da Notre Dame.
E fico intrigada com a verdade destas tantas cidades em uma só. Tantas pessoas, tantas vidinhas, mas só uma Paris.
Que carinho fez teu texto na minha saudade, Maria. Com toda a sensibilidade você vai tecendo as melhores memórias e o melhor de Paris. Obrigada pelo post!
LikeLike
Querida Lê,
nossa Paris é a mesma, estivemos nela juntas e isso teremos sempre…
Você e Vi são parte crucial dessa matemática da felicidade europeia…
LikeLike
Acho que vale uma coleção: “Maria e as cidades”. LA, Kétou, Paris! As cidades visíveis, um olhar muito sensível. Demais!
LikeLike
Nem tinha me dado conta, Cake…
Ainda vou publicar o texto sobre LA. Em breve… é verdade menina, essas cidades me povoam…
LikeLike
Clap clap clap!
Très bien, Maria! 😉
E eu que nunca fui a Paris me vi na garupa da bicicleta, admirando cada centímetro percorrido entre as ruas da cidade-luz e as linhas de seu texto. Brilhante– e poético! Lembrou-me estes versos de Brecht, que epigrafam um poema de Benedetti: “Me parezco al que llevaba el ladrillo consigo/ para mostrar al mundo cómo era su casa”– você nos leva a ela de bicicleta.
LikeLike
Ei Fred,
obrigada pelo comentário 🙂
Sempre, o melhor de tudo, a grande recompensa da escrita, é saber que o texto funcionou, que tocou, deu medo, deu raiva, deu nojo, emoção, tristeza ou alegria.
Pra mim, é sempre o melhor elogio saber que deu certo!
Obrigada mais uma vez!
LikeLike
belo texto. Conciso , leve e sensível. Parabéns!
LikeLike
Olá Beth,
muito obrigada pelo seu comentário.
Volte para ler mais textos nas próximas semanas…
LikeLike
Querida, que coisa mais linda!! Emocionei…
LikeLike
Luca, querida, obrigada… 🙂
LikeLike
Que doce, vc e sua bicicleta!
LikeLike
A vida de bicicleta passa diferente…
LikeLike
Mary, também adorei… Lembrei demais dos dias que passamos em Paris juntas… e realmente o texto nos faz sentir parte da sua vidinha lá!!!
LikeLike
Clair, nossa viagem a paris juntas foi inesquecível, mesmo depois a cidade tendo virado minha casa… foi um início de uma bela e feliz era da minha vida.
E você foi a melhor parceira de viagem que já encontrei… ❤
LikeLike
Pingback: Bicicleta lifestyle