A virada do jogo

No penúltimo dia dos Jogos Olímpicos de Londres, a seleção brasileira de vôlei feminino venceu a americana, embora tivesse começado perdendo o jogo. O ataque não estava dando certo, mas a recepção, o saque e o emocional estavam em alta. Um dos comentaristas chamou atenção para a sabedoria que rege o comportamento dos atletas quando, diante de apenas uma falha no sistema operacional, conseguem seguir fazendo bem aquilo que está funcionando. E o resultado e a verdade disso é que com o passar dos sets, o jogo delas se acertou, o fundamento que estava manco voltou a caminhar sobre duas pernas e elas venceram de virada. Algumas horas depois da partida, fui ao cinema assistir à pré-estreia de 360º, novo filme de Fernando Meirelles, e esse comentário ficou ecoando dentro da minha cabeça.

Todos os personagens do filme estão envolvidos em relações amorosas, apaixonadas, complicadas, adúlteras ou desgastadas, adjetivos a que estão sujeitos aqueles que se casam ou se juntam. Como o vôlei, os casamentos têm épocas boas, leves e aparentemente desprovidas de esforços, e outras mais ásperas, truncadas e laboriosas. Tanto um como outro vivem de repetições, tentam romper os vícios de comportamento ou de jogadas e são fonte de grande alegria e de imenso tormento. Reconheci, em silêncio, na sala de cinema, o quão difícil é seguir adiante quando um fundamento falha, ainda que os demais sigam bem. Como esse lugar do equívoco insiste em sugar nossas melhores energias e pensamentos e enterrá-los sob escombros de frustrações e ressentimentos que, se não tratados, viram mágoas que engessam no peito e endurecem na cabeça.

O filme de Meirelles traça um círculo ao redor de personagens interconectados e brinca com o ciclo dentro de relações isoladas. Ele nos mostra momentos de escolhas: por continuar junto ou pela bifurcação. Numa vida de casados, há ofertas tentadoras pelo caminho. Outras pessoas, outras vias e vidas, outros sonhos. Há, também, imperativos: filhos, rotina, dinheiro. E quais nossas razões para ceder a elas? Curiosidade, insegurança, fadiga; somos humanos, demasiado, humanos. O mitólogo Joseph Campbell me ensinou, em O Poder do Mito, que o casamento é uma provação, uma entrega do ego pela união. E ninguém faz isso sem espernear.

Casamento é difícil e dá trabalho, mas é muito mais legal que o plano b: a vida a dois é bem mais gostosa e até mais fácil. E o segredo de seu sucesso não está em uma fórmula engarrafada. É uma vida de escolhas reafirmadas dia após dia. São essas mesmas escolhas reiteradas que fazem deste pacto algo maleável. As demandas vão mudando com os anos, junto com nossas expectativas e os dois rebolam pra lá e pra cá pra manterem o passo. O casal que acaba dando certo não é o constantemente apaixonado, nem o que briga o tempo todo. Tampouco é o que não pensa em abandonar tudo ou o que fantasia com outras pessoas. Nem mesmo é o casal fiel.

É o que fica. E ficar é andar pra frente, sempre. Senão a bicicleta tomba. Ninguém realmente sabe bem o que está fazendo, exceto que com o andar da carruagem as abóboras se ajeitam. E Meirelles parece saber que isso se faz de dentro do matrimônio, só que pelo furo no ciclo.

Um dia perguntei à minha avó se ela ainda pensava muito no meu avô. “Todos os dias”, ela respondeu. “Não posso afirmar que não houve igual, mas mulher mais feliz do que eu era com o seu avô não teve.” Lembrei do que diz Rilke: “once the realization is accepted that even between the closest people infinite distances exist, a marvelous living side-by-side can grow up for them, if they succeed in loving the expanse between them, which gives them the possibility of always seeing each other as a whole and before an immense sky” (Uma vez aceita a compreensão de que mesmo entre as pessoas mais próximas existem distâncias infinitas, uma maravilhosa convivência lado-a-lado pode nascer entre elas, se conseguirem amar a vastidão entre elas, que as dá a possibilidade de ver o outro sempre como um todo e diante de um céu imenso, em tradução minha).Os 30 anos de casada, 26 de viúva e 53 de vida que nos separam conferem a ela a ciência de algo que eu e os personagens de 360º ainda estamos aprendendo: a não esperar dos que se ama mais do que eles podem te dar. Não há amor sem perdão e somos todos incompletos, inacabados. O que a gente pode fazer é pedalar, pedalar, pedalar até poder soltar outra vez o corpo na descida.

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