É sempre hoje

Robert Pirsig abre o posfácio da edição que eu tenho do livro “Zen e a arte de manutenção de motocicletas” contando que, na Grécia Antiga, a noção de tempo era a inversa da que conhecemos hoje no Ocidente. Ou seja, caminha-se para o futuro de costas, pois o futuro é desconhecido. E o passado está à nossa frente, aquilo que podemos ver. Não sei você, mas eu acho essa percepção do tempo bem mais fidedigna ao que experimentamos empiricamente na vida do que a ideia de que o futuro está adiante e o passado, atrás. Do passado sabemos – ao menos uma parte –, embora a memória seja uma faculdade criativa sempre em construção, alterando sem cessar nossa percepção do que passou. E o futuro, quem sabe dele?

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O tempo das coisas

Nosso século, que tanto fala de economia,
é um esbanjador:
esbanja o mais precioso, o espírito.
Friedrich Nietzsche

Quando você vai preparar um chá, tem o tempo de fervura da água, o momento da infusão, a espera pelo resfriamento e só então a ingestão da bebida. Não dá pra mudar a ordem dos fatores nem o tempo que cada um deles demanda. A água só vai ferver a 100oC, a erva precisa de alguns minutinhos na água quente pra ser infundida e se você não esperar esfriar vai queimar a língua. As coisas têm seu tempo. E embora os tempos hoje sejam de afobação, o chá ainda toma o tempo que toma pra ficar pronto. E tudo indica que vai continuar sendo assim. Saber disso, no corpo e na alma, é o que eu chamo de sabedoria.

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A cura peripatética

Desde que me mudei pra São Paulo, há mais de cinco anos, a maior dificuldade de adaptação à cidade que encontrei é a insuficiência de lugares verdes, abertos, de natureza. Mesmo sendo eu uma apreciadora cotidiana das frondosas árvores que, por razões inexplicáveis pra mim, continuam sobrevivendo com exuberância até nas partes mais concretadas da cidade. Mesmo assim. Faltam respiros em meio aos edifícios, locais não especulados imobiliariamente. Falta horizonte. Céu. Silêncio. E faço aqui de São Paulo uma metonímia, uma parte pelo todo, uma cidade representando as grandes metrópoles onde, cada uma a sua maneira regional/cultural, os desafios da vida urbana se apresentam de forma parecida.

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Bicicleta lifestyle

Esses dias fiquei pensando que o tuk-tuk é, pra uma cidade indiana, o que a carroça é (ou foi) no ambiente rural. O que a charrete foi no século 19. O que talvez as bigas tenham sido na Roma antiga. Um meio de transporte que te permite deslocar-se enquanto interage e observa o entorno de outro ângulo, em outra velocidade, mas ainda assim, em proximidade dos demais. O tuk-tuk, mesmo motorizado como é hoje, me parece ser um sobrevivente desse contato no trânsito que ainda era pessoal. E o que me veio à cabeça e ao coração todas as vezes que entrei num tuk-tuk na minha última viagem à Índia, há poucos meses, foi a bicicleta. Eles têm uma vibe parecida. Você tá ali, no corpo-a-corpo. Sobre rodas, mas ao ar livre. O trânsito apertado. O calor do escapamento dos carros. As pessoas a pé. Tudo muito perto. Olho no olho.

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A arte de morrer

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Manikarnika Ghat, Varanasi, Índia

Um dos momentos mais importantes em “Bacantes”, na montagem do Teatro Oficina a partir do texto de Eurípedes, é o estraçalhamento do corpo de Penteu. Um ato indissociável da entrega de Penteu a seu fim. De certa forma, é a consumação da tragédia, o ato em que o antagonista compreende e aceita seu papel. A cena é violenta e bela. Desse ritual de morte, todos são convidados a participar. Primeiro, do estraçalhamento, depois, do banquete onde Penteu será comido pelas bacantes, pelos tebanos, por todos nós; o momento da festa. Assim como todos ali presentes, Penteu percebe a situação em que se encontra, reconhece o inescapável – a morte, ali, pelas mãos delas – e abre os braços. Não resiste. Recebe. E morre.

Em dezembro, antes do fim da temporada de “Bacantes”, voltei a Varanasi, na Índia – a mais importante das cidades sagradas hindus e uma das mais antigas do mundo – e me lembrei o quão insípidos são os rituais de morte em muitas culturas.

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Só não seremos fofas

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By Laerte

Aprendi um termo novo esses dias: conformidade de gênero. Não tinha o vocabulário correto, mas a sensação, sim, claro. Há mulheres mais ou menos de acordo com o que se espera delas, assim como há homens considerados masculinos o bastante – ou não. Se sua intuição está agora te dizendo que quem tem maior conformidade de gênero só pode ser a mulher cis heterossexual, por exemplo, volte duas casas. Não necessariamente. A mulher trans pode ser muito mais lady. Conformidade de gênero, segundo aprendi, não tem a ver com orientação sexual nem com identidade de gênero, mas sim com o que se espera do comportamento social do seu gênero. Ou seja, quão feminina ou masculino é você?

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Madonna e Niemeyer

Já ouvi dizer que pessoas em cargo de mais responsabilidade e confiança ou de maior projeção profissional tendem a viver mais. Que o trabalho por ser feito mantém as pessoas vivas por mais tempo. Que o compromisso tira o pé da cova. Faz sentido, suponho. E sempre pensei isso do velho Oscar. Esse sagitariano danado que no dia 15 teria completado 105 anos, uns 90 deles de tabagismo intenso e convicto. Penso num senso de dever, e talvez até de missão, que impulsiona pessoas como ele. E, ciente do risco de ser apedrejada em praça pública, proponho uma associação arriscada entre duas figuras icônicas: Madonna e Niemeyer.

Creio que Madonna também viverá uma vida longa e ativa. Que depois da turnê acústica que quem sabe virá mais pra frente, ela vai passar para outras formas de criação (apostaria no cinema), mas não parar. Porque parar, realmente, seria o fim. E acho que com ela, como com Oscar, é o fim que os detém, não o contrário. Sim, vaidade é fundamental. A humildade não te faz levantar todos os dias e seguir sendo Madonna ou Niemeyer. Daí o risco que vem embutido neste senso messiânico. Leva a abusos, delírios de grandeza. E, não raro, à loucura.

Anos atrás li uma matéria, na Folha se não me engano, em que vários arquitetos renomados falavam sobre o ofício. Um deles, não me lembro mais qual, disse que o sonho de todo e qualquer arquiteto é, uma vez na vida, produzir uma grande obra. Atingir o sublime. E que ser contemporâneo de Niemeyer tinha sua dose de dor e de delícia. A inspiração e a opressão de um gênio que fez de suas obras, todas elas, primas. E ser contemporânea de Madonna não tem, igualmente, um sabor agridoce? Cito o jornalista Rodrigo Levino: “Quem tiver acompanhado a vinda recente de toda a nova geração de cantoras pop ao Brasil (Britney Spears, Christina Aguilera, Rihanna, Lady Gaga, Katy Perry), não deixará de constatar o óbvio: no dia em que o trono de Madonna vagar, vago continuará.” Para quem não gosta dela, a americana deve ser um rochedo no sapato. Madonna não larga o osso. E se nem Cristo foi unanimidade, como se diz por aí, tampouco foi o simpático e comunista Niemeyer.

De um lado, ela. Dentre suas súditas praticantes – ou seja, todas as performers femininas que vieram depois dela –, quantas duraram? Seu pioneirismo é incontestável. E 30 anos de carreira, sem perder o penteado, não são para qualquer um. Tem que ter a cabeça no lugar. Olhe aí no passado e no presente. Grandes homens e mulheres em potencial. A maioria amarela no meio do jogo e não volta para o segundo tempo. Morrem, piram, não aguentam o rojão. E conta-se nos dedos de uma única mão quem atingiu uma carreira desta solidez. Quem tem, em todos os discos, pelo menos uma ou duas músicas que ficam. Com certeza os Rolling Stones são dessa pequena elite.

De outro lado, ele. Entre arquitetos e estudantes de arquitetura que conheço, encontro críticas, reprimendas, desgostos com suas curvas e blocos soviéticos. Um argumento que eu respeito e tento entender, mas que muitas vezes me parece mais uma justificativa racional – a política por trás daquela cidade de Brasília, linda e estranha – que uma reação visceral a uma obra. E como eu acredito que arquitetura é a forma de arte mais interessante de se ver e de maior impacto sobre nosso cotidiano, prefiro a via irracional.

As artes são um pouco como o olfato. Antes de você reconhecer o aroma no ar, ele já te provocou alguma reação. Atração, repulsa, familiaridade. A arquitetura chega até você a despeito de sua permissão e de sua vontade. Apesar da política. A música tem a mesma natureza no campo sonoro. E ainda bem que é assim. Desconfio que se você for a um show da Madonna aberto à experiência que ela tem a intenção de te proporcionar, se não ficar emburrado com o playback e não for buscando uma coisa preconcebida, você vai com certeza se divertir. Porque é o que é. Um espetáculo. Não é Ramones ou The Stooges. E dentro de sua proposta, ela é a melhor. Como Oscar.

Recentemente voltei a Brasília e o encantamento perdura. E no último dia 5 fui ao show dela no Estádio do Morumbi, em São Paulo. Aguardando o início sob chuva, recebi uma mensagem no celular. “Agora o mundo realmente acaba… Niemeyer morreu.” Soltei um “Ah” de lamento em voz alta e as luzes se apagaram, fãs urraram e o show, três horas atrasado, começou com o soar de sinos e o balançar de um incensário gigante. Monges ergueram-se no palco, uma catedral de espelhos estilhaçou-se e ela, à la madonna, desceu do confessionário.

Durante esse prelúdio sacro, pensei no Oscar. Fiz meu minuto de silêncio. Admirei a diligência. A abnegação de outra vida. A aceitação de uma escolha, ou até da falta dela. O toque do divino, ou não. O trabalho exaustivo. A vida pessoal prejudicada. O amor pelo ofício. A preocupação com seu público. Lembrei de tudo dele que eu conhecia, suas obras. Tudo isso que vale para Oscar, vale para Madonna. Os dois são farinha do mesmo saco. Inquietos. E, para mim, a abertura deste show da turnê MDNA foi o réquiem do arquiteto. Me achei com sorte. Dessa eu não me esqueço.