Madonna e Niemeyer

Já ouvi dizer que pessoas em cargo de mais responsabilidade e confiança ou de maior projeção profissional tendem a viver mais. Que o trabalho por ser feito mantém as pessoas vivas por mais tempo. Que o compromisso tira o pé da cova. Faz sentido, suponho. E sempre pensei isso do velho Oscar. Esse sagitariano danado que no dia 15 teria completado 105 anos, uns 90 deles de tabagismo intenso e convicto. Penso num senso de dever, e talvez até de missão, que impulsiona pessoas como ele. E, ciente do risco de ser apedrejada em praça pública, proponho uma associação arriscada entre duas figuras icônicas: Madonna e Niemeyer.

Creio que Madonna também viverá uma vida longa e ativa. Que depois da turnê acústica que quem sabe virá mais pra frente, ela vai passar para outras formas de criação (apostaria no cinema), mas não parar. Porque parar, realmente, seria o fim. E acho que com ela, como com Oscar, é o fim que os detém, não o contrário. Sim, vaidade é fundamental. A humildade não te faz levantar todos os dias e seguir sendo Madonna ou Niemeyer. Daí o risco que vem embutido neste senso messiânico. Leva a abusos, delírios de grandeza. E, não raro, à loucura.

Anos atrás li uma matéria, na Folha se não me engano, em que vários arquitetos renomados falavam sobre o ofício. Um deles, não me lembro mais qual, disse que o sonho de todo e qualquer arquiteto é, uma vez na vida, produzir uma grande obra. Atingir o sublime. E que ser contemporâneo de Niemeyer tinha sua dose de dor e de delícia. A inspiração e a opressão de um gênio que fez de suas obras, todas elas, primas. E ser contemporânea de Madonna não tem, igualmente, um sabor agridoce? Cito o jornalista Rodrigo Levino: “Quem tiver acompanhado a vinda recente de toda a nova geração de cantoras pop ao Brasil (Britney Spears, Christina Aguilera, Rihanna, Lady Gaga, Katy Perry), não deixará de constatar o óbvio: no dia em que o trono de Madonna vagar, vago continuará.” Para quem não gosta dela, a americana deve ser um rochedo no sapato. Madonna não larga o osso. E se nem Cristo foi unanimidade, como se diz por aí, tampouco foi o simpático e comunista Niemeyer.

De um lado, ela. Dentre suas súditas praticantes – ou seja, todas as performers femininas que vieram depois dela –, quantas duraram? Seu pioneirismo é incontestável. E 30 anos de carreira, sem perder o penteado, não são para qualquer um. Tem que ter a cabeça no lugar. Olhe aí no passado e no presente. Grandes homens e mulheres em potencial. A maioria amarela no meio do jogo e não volta para o segundo tempo. Morrem, piram, não aguentam o rojão. E conta-se nos dedos de uma única mão quem atingiu uma carreira desta solidez. Quem tem, em todos os discos, pelo menos uma ou duas músicas que ficam. Com certeza os Rolling Stones são dessa pequena elite.

De outro lado, ele. Entre arquitetos e estudantes de arquitetura que conheço, encontro críticas, reprimendas, desgostos com suas curvas e blocos soviéticos. Um argumento que eu respeito e tento entender, mas que muitas vezes me parece mais uma justificativa racional – a política por trás daquela cidade de Brasília, linda e estranha – que uma reação visceral a uma obra. E como eu acredito que arquitetura é a forma de arte mais interessante de se ver e de maior impacto sobre nosso cotidiano, prefiro a via irracional.

As artes são um pouco como o olfato. Antes de você reconhecer o aroma no ar, ele já te provocou alguma reação. Atração, repulsa, familiaridade. A arquitetura chega até você a despeito de sua permissão e de sua vontade. Apesar da política. A música tem a mesma natureza no campo sonoro. E ainda bem que é assim. Desconfio que se você for a um show da Madonna aberto à experiência que ela tem a intenção de te proporcionar, se não ficar emburrado com o playback e não for buscando uma coisa preconcebida, você vai com certeza se divertir. Porque é o que é. Um espetáculo. Não é Ramones ou The Stooges. E dentro de sua proposta, ela é a melhor. Como Oscar.

Recentemente voltei a Brasília e o encantamento perdura. E no último dia 5 fui ao show dela no Estádio do Morumbi, em São Paulo. Aguardando o início sob chuva, recebi uma mensagem no celular. “Agora o mundo realmente acaba… Niemeyer morreu.” Soltei um “Ah” de lamento em voz alta e as luzes se apagaram, fãs urraram e o show, três horas atrasado, começou com o soar de sinos e o balançar de um incensário gigante. Monges ergueram-se no palco, uma catedral de espelhos estilhaçou-se e ela, à la madonna, desceu do confessionário.

Durante esse prelúdio sacro, pensei no Oscar. Fiz meu minuto de silêncio. Admirei a diligência. A abnegação de outra vida. A aceitação de uma escolha, ou até da falta dela. O toque do divino, ou não. O trabalho exaustivo. A vida pessoal prejudicada. O amor pelo ofício. A preocupação com seu público. Lembrei de tudo dele que eu conhecia, suas obras. Tudo isso que vale para Oscar, vale para Madonna. Os dois são farinha do mesmo saco. Inquietos. E, para mim, a abertura deste show da turnê MDNA foi o réquiem do arquiteto. Me achei com sorte. Dessa eu não me esqueço.

George Whitman

A primeira vez que ouvi falar da livraria Shakespeare and Company foi quando ganhei “Um livro por dia”, do canadense Jeremy Mercer. Minha irmã me mandou por correio, presente de Natal ou aniversário. Eu já tinha estado em Paris mais de uma vez, mas nunca soubera da existência da livraria até então. E foi exatamente na mesma época em que visitei, com minha irmã e pela primeira vez, a livraria City Lights, em São Francisco. Não sabia que se tratavam de livrarias irmãs. Que Lawrence Ferlinghetti, mecenas incontornável dos meus adorados beats e fundador da City Lights, havia sido hóspede da S&Co., de George Whitman.

Hoje, 14 de dezembro, faz um ano que George morreu. Está enterrado no Cemitério de Père Lachaise. E se estivesse vivo, teria completado 99 anos anteontem, no dia 12 de dezembro. Generoso, excêntrico, visionário, mal-humorado, rigoroso e amado, ele deixou um legado de pessoas, histórias, livros e inspiração. Em qualquer dia do ano, a qualquer hora do dia, dezenas de visitantes, turistas e admiradores rondam a livraria deste americano que se estabeleceu em Paris nos anos 1950 e por lá ficou. Muitos tiram fotos; alguns compram um exemplar carimbado com o selo legendário. Até roubam. Garotos de veludo cotelê aspirantes a dândi fazem cara de intelectuais entre as estantes e fumam cigarrinhos de enrolar no banco em frente. Bandas se apresentam na porta da livraria; festivais de literatura acontecem ali na calçada todos os verões e o estabelecimento empilhado de livros de forma desordenada abre todos os dias até às 23h. Os funcionários são todos tumbleweeds, escritores-residentes seminômades.

Devorei o livro de Mercer, que conta um pouco da história de fundação até o presente, e nesta época iniciei um novo ciclo de fantasias na minha vida. Poucas coisas são tão prazerosas como receber de presente um novo pacote de sonhos. É como se apaixonar por alguém. E eu passei a sonhar em morar entre as estantes empoeiradas da livraria. Virar a favorita de Whitman. Ler um livro por dia. E escrever dentro do cubículo do escritor, um pequeno compartimento com uma máquina de escrever, uma cadeira e um cinzeiro. Não me lembro exatamente da primeira vez em que fui à livraria, é curioso. Mas me lembro com nitidez do dia em que minha vida se ligou à dela.

Eu estava levando meu melhor amigo para conhecer aquele paraíso com cheiro de guardado. Era um dia curto e cinza de dezembro, perto do réveillon. Alguém tocava piano na sala de cima onde as camas, durante o dia, viram pousos para os leitores visitantes. Sobre a porta, o mote e epitáfio daquele templo nos recebia: “Be not inhospitable to strangers, lest they be angels in disguise” (“Não seja inóspito com estranhos sob pena de serem anjos disfarçados”, em tradução aproximada). E entre as paredes estreitas que afunilam-se dos lados da escada íngreme – entre anúncios de tradutores, redatores, apartamentos pra alugar, baby-sitters bilíngues e aulas de inglês – uma folha ofício pregada dizia “Ateliê de Escritores, todas as terças, às 19h, inscrições por email”. Arranquei a folha pra mim.

Frequentei o ateliê por quase dois anos. Todas as terças à noite. Perdi uma ou duas sessões apenas. Descia de bicicleta de casa até lá, mesmo no frio alfinetante de fevereiro. O grupo tinha sempre entre 10 e 15 pessoas, e uma inglesa (e hoje amiga) nos coordenava, mediando o bando de escritores. A maioria amadores; raros com publicações. Poucos, como eu, eram assíduos. Encadeavam um pacote de dois meses atrás do outro. A maioria vinha uma só vez. Muitos intercambistas, passantes, gente que estava ali só por uma temporada, curiosos e outros tantos perdidos. Paris está sempre repleta destes. O público da livraria, desavisado, subia regularmente ao quarto de estudos onde nos reuníamos, sem saber do que se tratava. Assistiam-nos, ouviam-nos.

Paredes de livros nos rodeavam em frente ao Sena, do chão torto ao teto baixo com vigas de madeira. A parede desnivelada. A janela fria voltada para a Catedral de Notre Dame, logo ali do outro lado do rio, gelada e sem vedação. O vento de inverno passava fininho e cortante pela fresta. Sempre me sentava ali, no parapeito desta janela, escrevendo sobre uma mesa cujo pé quebrado foi substituído por uma pilha de livros grossos e de capa dura. De um lado meu, um banco comprido onde quase dez pessoas se espremiam, pernas contra pernas, bloquinhos e canetas à mão. Na minha frente, outro banco, só que menor. E do meu outro lado, duas grandes poltronas na frente da porta que dá acesso ao corredor privado do prédio 37 rue de la Bûcherie.

Por ali acessava-se o quarto de George Whitman. Nunca o vi na livraria, mas sabia que estava do outro lado daquela porta. Certa vez usei o banheiro de seu aposento, mas ele não estava. E nos raros dias em que a livraria não estava aberta até tarde, subíamos por essa lateral. No interfone, lia-se “Whitman” ao lado de “Antiquarium”, o anexo da loja com obras raras e, à noite, suíte presidencial de um tumbleweed afortunado. Meu coração acelerava um pouquinho. Toda vez. Era a antecipação de cruzar com ele na escada. Mas nunca o vi lá. Já estava bem velhinho nessa época, não fazia mais chá e panquecas de café da manhã pra quem aparecesse no domingo. Sua filha, sim. Passava algumas vezes. Tem a mesma idade que eu. E nos deixava usar o espaço gratuitamente. Sempre foi assim.

As regras do ateliê eram poucas e claras. Escrever. Mexer no texto. Ler em voz alta. Criticar e receber críticas. Tornamo-nos amigos. Compartilhar textos é sempre um ato íntimo, pessoal. E aprendi sobre meus colegas de maneira lenta e progressiva. Conto por conto. Uma australiana. Duas americanas. Uma chilena. Um escocês. Um galês. Tantas histórias. No início desse ano de 2012, nossos contos foram publicados numa antologia de autores do ateliê intitulada “Vignettes & Postcards”. Perdi o lançamento, mas penso na S&Co. com religiosidade e afeto. No cheiro de livro com madeira. Na vista para Notre Dame. Nos amigos e confidências. No que aquilo foi na vida de todos nós, no que ainda é. Faço parte de uma história da qual me orgulho.

Hoje, portanto, agradeço, de longe, à generosidade deste comparsa sagitariano. À de sua família. À importância inestimável que todos ali tiveram na minha vida. E a conquista mais valiosa, que levarei comigo, é a descoberta de que deveria escrever. De que não poderia não escrever. De achar um fim pra esse tormento. Assumir isso pra mim foi um parto. Demorou. Doeu. Confundiu. Levou a lágrimas e alguns porres. Mas, por fim, aliviou. No meu último dia de ateliê, um dia apenas antes de retornar ao Brasil definitivamente, chorei pela despedida e pelo presente que foi aquele lugar, aquela experiência. Mas, sobretudo, porque não era mais a mesma pessoa. E tudo porque George decidiu confiar em estranhos.

 

Troca de presentes

É quase Natal e pensei em minha tia em Los Angeles, que tem a seguinte filosofia: nada diz tanto sobre o futuro promissor ou não de uma relação quanto 1) a qualidade do sono a dois e 2) a troca de presentes. Ela pleiteia que o sucesso de uma união pode estar escrito nos fios do lençol. Que o “felizes para sempre” é, em grande parte, determinado pelo encaixe coreografado da conchinha noturna. E, mais do que isso, o acerto dos presentes é fundamental. Quando o casal acerta e oferece aquilo que o outro desejava, em segredo, alcança um recôncavo íntimo de afeto. Para ela, eis a receita da longevidade de uma relação amorosa. Dormir e presentear.

Fui me rendendo a essa ideia. No Natal de 2009, ganhei uma foto do céu. Um bonequinho de tecido costurado a mão e inspirado no meu bichinho de pelúcia da infância. Um livro de trava-línguas em francês, para crianças. Dei um livro de minha biblioteca pessoal. Um cachecol usado. Um pão caseiro. Um manuscrito original rabiscado. Naquele ano em Paris, propus a minha família adquirida – meus amigos do peito, braços, pernas e fígado – que não gastássemos dinheiro com presentes. O acordo era trocar apenas pertences doados de nosso acervo pessoal ou fabricados manualmente para aquela ocasião. Éramos somente oito, não foi muito complicado. E foi o Natal mais especial até hoje.

A inspiração veio de um conto de Paul Auster e o gesto ficou. Isso porque eu já tinha uma filosofia que pratico com os demais em função do que acredito que valha para mim. Não gosto de presentear ou de ser presenteada por default. A pressão por uma compra, apenas pela premência da data, me deixa aflita. É arbitrária e rouba o significado de um gesto que deveria ser, sempre, sincero. Presentear é uma forma de amar. Deve ser feito com zelo. Quando alguém que nós amamos erra muito ao nos presentear, podemos sentir-nos mal-lidos, até malquistos. É pessoal. Provavelmente, o outro agiu sem vontade, comprou sem tesão. Um erro. Para acertar é preciso tempo. Degustação. Algo que melhora com a intimidade. E só muito de vez em quando acontece naturalmente, à primeira vista.

Há cerca de 5 anos, comecei a cortar pertences na vida. Fruto de muita mudança. Muita mala feita. Muita coisa perdida, ou deixada pra trás, com e sem remorsos. Da transição de um armário inteiro para uma única porta de guarda-roupas. Fui me desapegando das coisas extras. E preferindo ter apenas o que me fosse necessário, pois o supérfluo, cedo ou tarde, acabava abandonado na casa de alguém, quando a mala seguinte não fechava. Acostumei-me aos espaços pequenos, junto com o jetlag. E, mais do que nunca, desenvolvi apreço pelos presentes bem-dados. Os certeiros. Aqueles que eu não deixo, nunca, para trás.

E destes, não me desfaço facilmente. Meus amigos riem de mim. Sempre com a mesma bota. A mesma bolsa. O relógio de 10 anos. Dou livros rabiscados de presente. Nunca acho que é hora de jogar algo fora. Que dá para remodelar, recauchutar, bricolar. E acho que sempre fui assim. Chegada em coisas usadas, precedidas de história, iniciada lá atrás. Prefiro isso ao objeto novo, imaculado e desencarnado. Quando dou um pertence meu a alguém, ele naturalmente segue com uma parte minha, um pedacinho que não cabe num postal, que não vende no shopping. E aviso logo: não dou garantia de três meses; só vitalícia.

Porque presente bom não acaba, se desdobra em outros, gera vida. Uma viagem. Uma música. Uma visita. Um ingresso para um show inesquecível. Uma carta. O presente mais certeiro que eu já recebi foi uma câmera de fotografia Canon-AE1, faz quatro anos. Mudou meu jeito de olhar as coisas ao meu redor. Não há gratidão prevista para isso. E foi um desses à primeira vista, sem ensaio. Nunca foi deixada para trás. Replica-se. É um pedacinho de vida, uma porção de alguém. E foi, realmente, precedida de uma conchinha perfeita.

A era de ouro punk

Em outubro de 2006, fui cobrir o TIM Festival, na Marina da Glória do Rio de Janeiro. Cheguei mais cedo, sozinha, para ver a apresentação de Herbie Hancock. Recostei-me no bar, ao fundo. Ele também, cotovelos apoiados sobre o balcão. Lenny Kaye. Reconheci-o na hora. Tinha visto-o no palco na noite anterior com Patti Smith, um show que me surpreendera pelo punch. Reconheci-o, em parte, pelas longas pernas, tão finas nas skinny jeans. Lenny é um personagem ativo da bíblia punk “Please kill me” (“Mate-me por favor”), o livro escrito pelos jornalistas Larry “Legs” McNeil e Gilliam McCain, inteiramente com falas diretas de personagens reais da cena musical de Nova York, do final dos anos 60 ao inicinho dos anos 90.

Estávamos ambos sozinhos. Resolvi puxar papo. Falei que gostei do show. Ele sorriu com os lábios selados. Me comprou uma cerveja. E paramos de prestar atenção no show. Lenny me contou do show de despedida em que tocara com Patti, na última noite de funcionamento do CBGB – o QG punk. Eu devorei cada detalhe. Ali estava um sobrevivente de uma nostalgia utópica que eu jamais viveria. Contive meu entusiasmo para que a noite não acabasse rápido demais.

Após o show, Lenny precisou ir ao backstage dar satisfação a sua equipe. Ele queria ficar, ver mais shows, curtir a noite quente do Rio de Janeiro à beira mar; em suma, se jogar. Fiquei incumbida de assegurar seu bem-estar até a hora em que ele quisesse ir embora, quando a van voltaria para buscá-lo. Passamos pelas pedras da Marina para ver o mar e terminamos na tenda principal. Chegamos justo para o show de abertura do Yeah Yeah Yeahs. Não curto a banda, mas Lenny não parecia se importar. Estava se divertindo. Alguns fãs o reconheceram. Se aproximaram, tímidos. Ele bebeu pouco e dançou bastante. Magrinho de tudo, com a cabeleira abaixo das orelhas e de um branco imaculado. Terminamos a noite pulando ao som dos Beastie Boys. Nos despedimos. E nunca mais o vi.

Corta para 2011. Um amigão pernambucano me sugere ler “Just kids” (“Só garotos”), da Patti Smith. Amei e deixei o livro todo rabiscado a caneta. Nele, a poetisa punk escreve fragmentos de memórias. De sua mudança para Nova York, no fim dos anos 60, até o fim dos anos 80, período pelo qual se estendeu sua relação amoroso-artística-espiritual-fraterna com Robert Mapplethorpe, o infame artista plástico e fotógrafo. Patti foi então a Paris receber um prêmio pela publicação, concedido pela revista Inrockuptibles (Inrockuptíveis), a Rolling Stone Magazine da França. A entrega foi no Gibus, a casa-templo onde os Beatles tocaram. E fui lá com outro amigão, esse mineiro.

Chegamos na mesma hora que a autora, entramos juntos, e o que acompanhamos foi bonito. Um lugar pequeno, apertado. Ali só tinha fã de verdade. Gritaria, empurra-empurra, fotos e autógrafos? Nenhuma dessas coisas. Só aplausos. Sinceros e elegantes. Ele desfilou, com timidez enternecedora, adentrando o bar. Parou ao fundo, onde a mandaram ficar. Olhava para gente. Sem maquiagem alguma. Camiseta branca e larga. Jaqueta velha. Tranças grisalhas ao lado da cabeça. Dentes muito amarelos. Uma expressão envergonhada e sem pressa. Deu um passo a frente e me olhou nos olhos. “Não sei o que dizer. Ou fazer”, falou e deu de ombros, sem tirar as mãos dos bolsos. “É. Ninguém sabe”, respondi esperando ajudar. Parei. E prossegui. “Tenho certeza de que você ouve isso o tempo todo, mas eu realmente amei seu livro. Foi a melhor coisa que li em muito tempo. Tão honesto, tão lindo”, falei por fim, atropelada pelo silêncio ensurdecedor que ameaçou se instaurar. Ela balançou a cabeça, fechou um pouco os olhos, em gesto de gratidão.

Me calei. Passei a ela os dois livros que tinha em mãos. Ela perguntou se era a edição inglesa e respondi que achava que sim, pois tinha comprado na Europa. Ela olhou a foto da capa. Ela e Robert. “Prefiro essa foto da capa aqui, mais do que a da versão americana”. Observei-a observar o livro. Ela então assinou meu exemplar e o outro, para meu amigo. “Foi ele quem me sugeriu ‘Just kids’”, expliquei. “É um presente especial.” Peguei meus dois exemplares e dei espaço aos demais leitores, todos com livros nas mãos. Em poucos minutos, Patti estava sozinha outra vez, no canto do bar. As mãos continuavam nos bolsos. O olhar era curioso, como os nossos. Nos fitamos e ela, de novo, deu de ombros, embaraçada. Sorrimos. Me aproximei. Contei a ela meu encontro etílico com Lenny, cinco anos antes, no Rio de Janeiro. Dei o máximo de detalhes de que pude me lembrar, falando alto em seu ouvido para romper o ruído ambiente. “Esta história é a cara dele”, aprovou com bondade. Perguntei se ele ainda estava em Nova York. Contei que desde então, após uns dois e-mails, não tínhamos mais nos falado. “Ele está lá. Ele está sempre lá. Agora mais velhinho.”

Nunca fui fã de Patti Smith, nem de Lenny Kaye. Mas se existe uma Era de Ouro, para mim, ela foi Nova York nos anos 60 e 70. É meu Oásis atemporal, para onde minhas fantasias vagam num sábado à tarde. E “Just kids” é “Please kill me” apaixonado. Me rendi. A prosa de Patti memorialista, sensível e articulada, me tocou muito mais que sua poesia punk, declamada. Senti, nos dedos ao passar as páginas, seu amor por Robert. Alimentei-me dele. Lembrei-me de Lenny, no Rio, do pernambucano que nunca recebeu o livro extraviado. Nutri-me daqueles dois encontros. E o que me veio à mente, de súbito, foi esse trecho do livro: “I understood that in this small space of time, we had mutually surrendered our loneliness and replaced it with trust” (Entendi que neste pequeno espaço de tempo, havíamos ambos rendido nossa solidão e substituído-a pela confiança). E não há nada de fantasioso nisso. No fundo, toda história é sobre um amor; toda cidade também é uma história. E é no meio dos dois que voltamos a ser garotos.

A consciência branca

Leis demarcam uma conquista. Reinados e impérios, quando ocupam um território, primeiro deixam soldados guarnecendo a fronteira. Depois distribuem as terras para serem ocupadas por seus súditos, a exemplo do que fez Portugal com suas Capitanias Hereditárias no Brasil. Em seguida, constroem templos, marcos, castelos, delineiam uma história da ocupação e criam uma narrativa de fundação. Como os espanhóis e suas catedrais erguidas sobre os templos Incas no Peru. Como os founding fathers nos EUA.

Leis são territorializações. Nos libertam de tomar decisões novas a cada situação. São uma forma de aglomerar um, dois, três casos ou mais e dizer: aqui, nestes casos, faremos sempre dessa forma. Não precisa, a cada vez, chegar num cruzamento e decidir se vai ou não vai atravessar a rua. O sinal está fechado. Haverá, de certo, infrações, o que não elimina a regra. E haverá melhorias a serem feitas, ad aeternum. O sinal amarelo, por exemplo, foi uma delas. A faixa de pedestres.

A partir do momento em que é legislada, a lei já está datada e precisa ser aprimorada. É resultado de tanto tempo de deliberação, maturação, aprovação e aplicação que é inevitável que esteja velha no momento do nascimento. Mas não é, por isso, menos importante. Sem ela não haveria essa delimitação: chegamos até aqui. É onde se troca o bastão. E dispara adiante o novo corredor, para os próximos 100m do revezamento.

O filósofo alemão Immanuel Kant tem um texto muito bonito sobre o iluminismo, ou melhor, sobre a ilustração. Ele explica que se uma grande ideia não é legislada ela não passa de uma epifania. Somente dentro de um sistema em que se possa aplicá-la a um grupo maior que o indivíduo que a elaborou ela se estrutura como iluminação. E, em seguida, é preciso que seja aceita e respeitada pelo grupo. O Estado é um tipo de grupo. Não matarás, por exemplo. É preciso que a lei valha para todos e que todos corroborem o sistema que a faz valer. Só assim é uma lei. E é de todos. E aquela epifania de um indivíduo se configura numa ilustração. Num avanço.

Em 20 de novembro, comemoramos o Dia da Consciência Negra. Abundam por aí comentários obtusos sobre as cotas. O mesmo vale para as leis que exigem respeito aos homossexuais. Num grupo pequeno há espaço para diálogo, para acomodação de todos, para o caso a caso. Digamos, na sua família, vocês podem aplicar um sistema próprio de aceitação e negociação das diferenças. Mas uma cidade é muito grande; um país tem mais gente ainda; e o mundo está lotado. Não é possível contar apenas com o bom senso. Então criamos leis. Para desenhar uma linha  no chão.

Se você é homofóbico e/ou racista, verá a lei como entrave. Se é gay e/ou negro, como garantia. E, convenhamos, estabelecer algo básico como “desrespeitar alguém por diferença racial ou prática sexual é crime” não deveria gerar tanta polêmica assim. É muito primário. É respeito à vida do outro. Seus pais deveriam ter te ensinado isso em casa. Você e eu merecemos ser respeitados por nossas escolhas e práticas, e a lei vai assegurar que não sejamos demitidos, agredidos ou alienados por nossa raça, prática sexual ou gênero. Ainda assim, vão dizer por aí que cotas geram racismo. Que dão vagas dos melhores alunos aos piores alunos.

Opiniões como esta só escancaram, em alto e claríssimo som, a necessidade da lei. Racismo já existe, pessoal, ninguém está inventando isso agora. A escravidão aconteceu, não é um boato. As cotas são um passo a frente. E porque a lei é falha e sempre em construção, é preciso saber pressionar por seus avanços. Porque se ela exclui, por exemplo, os brancos de baixa renda e não elimina a urgência de se fortalecer o ensino público brasileiro, lembremo-nos que conquistas são lentas e trabalhosas. E os buracos não podem invalidar todos os acertos.

Os brancos não são maioria no mundo, como nunca o foram entre seus escravos. Mas seguem sendo os donos da bola. Donos do dinheiro. Do trono, do poder. Muitos (muitos mesmo) descendentes deste homem branco sui generis, no entanto, olham as grandes guerras na Europa e não vêm, ali, o cântico do seu povo, o cordel de sua terra. Não se vêm na escravidão. Não reconhecem sua pegada no genocídio indígena. Acham que racismo não é crime e se esquecem que muita coisa terrível nesse mundo foi feita por seu clã. E só lembrando podemos ensinar e aprender.

Não proponho, aqui, martírio nem cinismo, só consciência. De que somos brancos. Do que é ser branco. De nossa herança. Para conseguirmos nos enxergar na escravidão. Para vermos o chicote na própria mão. E para não nos esquecermos de que todo homem branco é culpado.

Um dia foi abolida a escravidão. Um dia as mulheres puderam votar. Só depois vieram, ambos, a trabalhar com os brancos e com os homens. Estão se tornando chefes. Agora podem casar-se com quem quiserem. O aborto ainda não é legal na maior parte do mundo, nem o casamento gay, e os negros ainda não têm igualdade de tratamento e direitos. Ainda tem gente que acha que homossexualidade é um defeito de fábrica; que negros e mulheres são intelectualmente inferiores. Pergunto: isso invalida as leis Áurea, do Sufrágio Universal e Rosa, lá atrás, o primeiro de tantos passos? Adiante, pessoal, adiante. Estamos escrevendo uma história nova. Passemos o bastão para frente.

Homem invisível, Posto 9, Rio de Janeiro, by Maria Bitarello

Lavar roupa todo dia, que alegria

Eu costumo dizer que “não gosto de ler” não é uma afirmação possível. É como “não gosto de comer” ou “não gosto de sexo”. Tem oferta pra todos os gostos, alguma coisa vai atiçar seu paladar. Da mesma maneira, sempre tem algum tipo de leitura que vai te cativar. Romances russos ou bula de remédio. Filosofia alemã ou classificados. Pornografia ou manual de videocassete. Algo ou alguém vai te interessar. Pois bem, creio que o mesmo vale para o serviço doméstico. E antes que os mais mimados e preguiçosos torçam o nariz, sugiro que ao menos tentem antes de negar. Alguma das tarefas envolvidas no cuidado da casa vai se revelar prazerosa pra você. E isso pode dizer algo a seu respeito.

Uma amiga minha, por exemplo, adora tirar pó. Ela tem uma disposição incansável para retirar todos os porta-retratos do móvel da sala, limpar livro por livro da biblioteca, passar óleo de peroba nas prateleiras e recolocar todos os bibelôs na estante. É admirável. Por outro lado, detesta cozinhar. Sua comida é boa, mas ela não acredita, tamanho o desgosto. Há quem goste de limpar as teclas do computador com um cotonete ou quem lave as cortinas a cada vez que sofre uma decepção. Com sorte, na sua casa os residentes terão aptidões distintas. Isso vai evitar conflitos e manter a harmonia. Vocês nunca vão brigar porque ninguém quer tirar o lixo. Na casa compartilhada da minha irmã, o acordo é que ela mata as aranhas e sua amiga, as baratas. Meu pai gosta de cozinhar as carnes, minha madrasta as guarnições e molhos. E por aí vai.

A beleza disso tudo (e cito minha irmã) é que o trabalho doméstico é infinito e renovável. Imaculado hoje; imundo semana que vem. Nunca faltará o que fazer num momento de procrastinação. Aqui em São Paulo dizem “varzear”, o que achei muito apropriado. Quando algo de extremamente importante precisar ser feito para o trabalho, chegará, enfim, o grande momento de esvaziar aquele guarda-roupa entulhado de malas e caixas de papelão. Somente na hora H da entrega de um documento urgente aceitaremos encarar a pilha de contas jogadas na gaveta pra triar e jogar fora o que não prestar mais. E quando estivermos quase à porta, saindo atrasados, decidiremos consertar o pé daquela mesa empenada. O serviço doméstico nunca vai te deixar na mão. Conte com ele.

Além disso, ele é democrático. Seu talento, imaginemos, pode residir em resolver pepinos na fiação elétrica, desentupir privadas, comparecer às reuniões de condomínio ou brigar com a provedora de internet pelo telefone. Tenho clareza e convicção de que estes não são os meus, mas precisamos de habilidades complementares pra formar um time, não é mesmo? Eu sempre gostei de mexer com água. Lavar louça, limpar o banheiro e cuidar da roupa suja são as minhas funções favoritas. A louça aqui em casa, aliás, foi a única tarefa que em algum momento gerou competição. Quando eu conto isso ninguém acredita, mas é verdade. Sobretudo ao acordar. Deixávamos acumular a louça da noite anterior, propositalmente, pra contar com a repetição mecânica e meditativa do ensaboar e enxaguar na manhã seguinte. Na sonolência matinal, essa tarefa cai como uma luva. Ajuda o cérebro a pegar no tranco.

O que não suporto é aspirador de pó. Detesto. O barulho me deixa aflita e não vejo a hora de acabar pra poder desligá-lo. Acabo fazendo malfeito. Me lembro de um trecho do livro de Amélie Nothomb chamado “Metafísica dos Tubos” em que ela diz o seguinte: “L’aspirateur: Il y avait un miracle. L’appareil avalait les réalités matérielles qu’il rencontrait et ils les transformait en inexistence. Il remplaçait le quelque chose par le rien: cette substitution ne pouvait être qu’œuvre divine.” (O aspirador: era um milagre. O aparelho engolia realidades materiais que encontrava e as transformava em inexistência. Substituía alguma coisa pelo nada: essa substituição só poderia ser obra divina). Divino ou satânico, o aspirador leva junto a minha paciência e meu bom humor. Pretendo viver toda uma vida usando a vassoura.

A verdade é que tenho pra mim que poucas coisas revigoram o espírito e limpam a cabeça como uma bela faxina. Na casa toda. Têm dias pra todos os gostos, está claro. Uns são melhor quando diluídos. Uma tarefa por dia. Hoje a roupa suja; amanhã o banheiro; depois as janelas. Mas um domingo de ressaca é o momento ideal pra deixar desabrochar a Amélia que existe dentro de todos nós. Após a jornada, estamos cansados, sujos e purificados. E tomamos o banho redentor com a casa cheirosa e o banheiro brilhando. Acendo até um incenso no final. Insisto que vale uma tentativa antes de contratar uma faxineira.

A mais prazerosa e popular das tarefas é cozinhar. Mesmo quem não gosta de faxina pode ter tino pra comida. Na casa de um amigo tem um quadro pendurado ao lado da geladeira que diz assim: “A cozinha é o lugar mais fascinante da casa, o mais coletivo. Um espaço que reúne sobrevivência, prazer, refinamento e civilização”. Está lá em Minas. Se um mineiro visitar seu lar, não vai comentar seu sofá novo ou a pintura na parede do quarto com tanto entusiasmo como opinar sobre a cozinha. Pequena ou grande. Bem ou mal iluminada. Arejada. Boa pra receber os amigos. E é ali que passará a maior parte do tempo. Não adianta. Já tentei levar os convidados pra sala. Várias vezes. Eles sempre voltam pra cozinha, magnetizados. Dispõem-se ao redor do fogão, cervejas apoiadas na máquina de lavar roupas. Melhor aceitar.

E eu bem que gosto. Pra quem está no comando das panelas, é bom ter companhia humana e alcóolica. Mistura da mineira e da italiana que há em mim, adoro dar de comer aos amigos. Mistura de neurótica com procrastinadora, na manhã seguinte vou limpar tudo, pra curar a ressaca, exorcizar os demônios e evitar algo mais importante. Procastinare lusitanum est.

Dia de Finados

“Você morreu pra mim. Nunca mais quero te ver.” Queima-se cartas, rasga-se fotos, apaga-se mensagens de celular e email, muda-se de amigos. Enterramos o outro em vida. Encerramos um amor ou uma amizade. A paixão adolescente é dramática, e sofrida é a primeira perda. “Como será possível a vida continuar sem você”, esbravejamos, mão contra o peito, “sobretudo porque você está vivo? Sua vida continua, só não é mais comigo.” A dor é muito grande; a incompreensão e frustração, maiores. E delas tiramos aprendizado.

É Finados. Dia dos Mortos. Aqueles que a vida tira de nós. É dia dos vivos lembrarem-se deles. Quando eu era criança, achava a cerimônia de morte demasiado mórbida. Velar o corpo era uma tara que eu não pretendia partilhar. Isso muito antes de entender o luto. E, sobretudo, que trata-se de um ritual para os vivos. Para seguirmos adiante sem arrastar um caixão desajeitado vida afora. Sem assombração nem nada. Porque ao contrário do que nos dizem na infância, a morte não vem apenas no fim. Acontece o tempo todo. Ao nosso redor, dentro de casa. Em nós mesmos. A vida toda.

Proponho, portanto, que hoje lembremos também daqueles que extirpamos da nossa vida sem óbito. Pela separação. Para que nos lembremos mesmo depois que não recordarmos mais os detalhes do rosto. Pois “eliminar os mortos da memória não é possível. O passado está cheio de mortos, mas aqui estou eu a continuar a lhes dar vida. Quem é que se pode separar disso?”. A frase é de José Saramago, que também diz que o passado não passa, acumula. Empilhado sobre o presente. Nesta pilha, enfileiram-se os sepultamentos póstumos e também as mortes em vida.

Gostaria, ainda, de evocar um terceiro tipo de defunto. Da categoria Lance Armstrong. Que não foi tirado de nós e que nós não afastamos voluntariamente. É a História que apaga seu traço; eis sua condenação. O morto-vivo punido com o esquecimento. O ostracismo. Todos os grandes – nos esportes, nas artes, nas ciências – buscam a imortalidade. Sua perpetuação. Tirá-la é uma forma de punição customizada das mais perversas. Falei sobre isso em outro artigo nessa coluna, lembrando “1984”, de George Orwell.

E a primeira coisa em que pensei quando soube do afastamento de Armstrong foi justamente Orwell. “Não estamos mais em guerra com a Eurásia; na verdade, nunca estivemos”. Lobotomia ideológica em “1984”. A cada reviravolta na política, apagam-se os arquivos de jornal. Deleta-se do cotidiano todo e qualquer vestígio. Uma verdade que nunca houvera, da qual se duvida e que aos poucos vira uma mentira.

O ciclista americano vai “sair” da História como o farsante que teve seu mandato esportivo caçado. Não será esquecido por completo, mas, em 100 anos, será um rosto desbotado. Ele, antigo detentor dos impressionantes 7 títulos na Tour de France, em sequência. Com o passar das gerações, seu nome – apagado do panteão do esporte – deixará de ser dito. Seu doping não será usado como exemplo. Uma decisão judicial que hoje custa mais a nós, seu público, sobre quem pesa a incumbência do esquecimento. Forçados por lei a enterrar sua glória.

Sempre dizem que “a vida continua”, mas a vida sempre acaba. É a morte que continua, para sempre. E enquanto estivermos por aqui, levamos nossos mortos conosco, pelas mãos. Há os que, diante disso, prefiram tirar as perdas de vista. Maquiar a ausência onipresente. E há os que prefiram ver para exorcizar. Fitar o corpo. No meio dos dois, com tempo e paciência, existe outro lugar. Onde lembramos para seguir adiante. Onde há dor, não sofrimento. As saudades não passam mesmo. Mas mudam.

Nesse Finados, portanto, penso nos vivos. Pois não há aceitação no esquecimento. Penso em quem recorda. Em quem se separou em vida. Em Lance Armstrong. E se uma criança me perguntar, amanhã, quem foi o ciclista, não vou repreendê-la. Não vou sussurrar baixinho. Muito menos prometer contar a verdade quando ela tiver idade. O americano é um memorial vivo, erguido em praça pública. Não nos deixa esquecer. Nos ajuda a prosseguir de mãos dadas com nossa história, os olhos abertos. Que façamos uso dele.

Jardin du Coq, Clermont-Ferrand, França (2010), by Maria Bitarello

A lã da Caxemira

Eu devia ter dito “não” logo na porta. Estrangeiro é educado em demasia. Temos medo de cometer gafes e por isso abanamos a cabeça pra qualquer um. Naturalmente, entramos em algumas roubadas. Eu bem que cruzei com duas americanas saindo da loja de tecidos que tentaram me alertar. Seus olhares sugeriam risadas e me apontavam o tamanho do buraco negro que me envolveria. Me achei mais esperta, pensei: “Não sou igual a elas, não vou cair na desses caras, só quero ver essas echarpes aqui”.

Quanta soberba. Sai de lá 2 horas depois com duas sacolas, um rombo no cartão de crédito, um convite para visitar a Caxemira, uma surra em barganha comercial e a barriga cheia de chá de canela com cardamomo. Nem vi de onde veio a coisa toda, perdi a noção de tempo e espaço. Culpa, ou mérito, de Majeed, um senhor de uns 60 e tantos anos, suponho. Túnica branca. Chéchia na cabeça, pés descalços, pernas cruzadas no chão como um faquir magrelo (redundante, mas necessário), barba branca pendurada abaixo do pescoço. Me recebeu com entusiasmo, doçura firme e sagacidade profissional. Seu olhar sempre no meu.

Pedi pra ver uma pashmina ou caxemira. Echarpes feitas de lã de cabras nativas da região dos Himalaias (Caxemira, Paquistão, Índia). “Existem alguns tipos”, me disse suave, segurando minha mão entre as suas. “As que são de lã normal, vendidas como se fossem caxemira. As que são um combinado de algodão e lã. As de caxemira, feitas na máquina. E as de caxemira, feitas a mão”. A fixação de seu olhar me tiranizava. A última opção era a melhor, evidentemente. A diferença de preço reforçava. Olhei pra todas elas, penduradas no meu braço. E esse senhor magrinho e de pés limpos me levou pela pequena loja de piso de carpete, mãos dadas.

Sentamo-nos ao chão com as caxemiras com bordados feitos a mão, cada uma mais maravilhosa e cara que a outra. Pilhas, montes delas. As melhores dentro de malas. Eu as olhava; ele me encarava. Atentamente. Se eu tocava ou se só olhava. Se sorria. Se não mudava de expressão. Se falava com ele da beleza da peça ou se a sentia em silêncio. Se dispensava-a ou se passava a superfície da echarpe contra a pele. A cada uma dessas pequenas pausas estéticas e sensórias, ele dava comandos em hindi ou dialeto de caxemira, sinceramente não sei, aos dois assistentes. Dois rapazes de 20 e poucos anos, vindos do norte da Índia. Camisas xadrez idênticas, como as calças jeans, e os cortes de cabelo mod. Cabelos bem lisos e cheios.

Eles obedeciam os comandos, ditos com autoridade, sem hesitar. Traziam uma nova pilha de echarpes. Dobravam tapetes. Desciam chá de canela com cardamomo, o lubrificante social de Majeed. Quando a negociação empacava, ele mandava descer mais chá. Primeiro sem açúcar. Depois com. Me olhava beber o chá. Me cortejando ou me drogando, e eu aceitando a isca, consciente do truque, mas encantada com o mágico. Com sua destreza com palavras e gestos, estrategicamente dispensados. Majeed é um mestre das paixões humanas.

Depois de uma busca conduzida e assistida por ele, de muito perto, escolhi 5. Não seria possível. Ele não aceitava que eu não levasse a caxemira dourada, a que pertencia a mim neste mundo. Eu concordei em hipnose; também não podia aceitar. Bota na conta. Quem dá mais? Eu dou menos. Toma lá, dá cá, bebe chá, um aperto de mão final e um forte tapa nas costas. Chegamos a um acordo.

Aliviada, queria sair dali o mais rápido possível. Embarquei na aventura cultural por vontade própria e mais por interesse antropológico que comercial, mas uma hora basta. Ele fechou as contas, embalou as echarpes e eu fiquei de bobeira olhando a loja. Eram muitos os tapetes. E as honrarias, os quadros que contam de prêmios de excelência, fotos de celebridades. Nelas, o mesmo aperto de mão. O pacto selado. Mais uma vítima indefesa do Mago Majeed.

E então vacilei. Em um momento de distração. Coisa de amadora; ele nunca parou de me olhar. Passei perto de um tapete e acariciei sua superfície. Majeed começou a desenrolar tapetes no chão, um atrás do outro, como línguas de lã. “Eu tenho que te ensinar como fazer o teste de qualidade de um tapete genuíno da Caxemira”, disse com um sorriso esperto. “Sem compromisso, não há pressão, você não tem que comprar nada”, sussurrou em confidência. Seu inglês é o mais eloquente que encontrei na Índia. “A qualidade é inquestionável, é um tapete para toda a vida. Minha família os faz há gerações. Sou da Caxemira. Quando você vai embora? Da próxima vez, vou te levar comigo lá, eu te levo no meu carro. É o paraíso na terra, a região mais linda de toda a Índia. Eu moro em Delhi, temos loja aqui no Hyatt, também no Sheraton, e um grande estoque. Vamos visita-lo amanhã? Que horas você pode?”

Fiquei zonza com tantas perguntas. Olhei pra baixo e ri baixinho. De improviso, ele seguiu meu olhar e passou a me mostrar a contagem de fios abaixo dos meus pés também descalços. Um repentista social. Nada escaparia a sua estratégia de venda. Com pânico e admiração, desenvolvi por ele, até o final da tarde, respeito sincero.

Com as echarpes já ensacadas, passamos então aos tapetes. São três as etapas de avaliação de qualidade. Primeiro. Na parte de trás, lá no meio, arranque um fiapo com uma agulha. A seda de verdade e costurada a mão solta fiapos curtos. A falsa, ou misturada, e feita a máquina, solta fiapos inteiriços. Na sequência, queime o fiapo. Se tiver cheiro de cabelo ou pena de galinha queimada, é seda. Se tiver cheiro de papel, é sintético. Não é piromancia, é uma espécie de selo ISO 9004.

Segundo. Teste para saber se a franjinha nas pontas do tapete são de seda inteiriça – se elas atravessam o tapete até as pontas – ou se foram simplesmente costuradas ali na beirola para parecerem verdadeiras, minimizando o valor do metro quadrado e aparentando sofisticação. No verso, mais uma vez, perto das bordas, levante um fio com uma agulha e balance de um lado para o outro, afrouxando o fio teso. Se ele for se soltando dos dois lados sem arrebentar, é porque atravessa o tapete. Senão, só está na ponta, e vai arrebentar assim que você perfurá-lo. Mais uma vez, batata. O cara conhece seu ofício. E por fim, pegue uma pequena lupa dessas de observar negativos de filme. A janelinha deve ter 2,5cm. Com ela, conte os fios. E verifique o que está indicado no rótulo atrás do produto. Se são 18, 24, 30 ou 50 fios. E bata o martelo.

Majeed é o melhor vendedor com o qual já cruzei na vida. Um Don Juan da tapeçaria. E eu sou uma péssima negociadora. Está claro que ele me convenceu a levar o tapete do qual eu não precisava, mais as 6 caxemiras. Fiquei buscando razões pra justificar aquela compra maluca, e achei umas duas, pra legitimizar o surto. Majeed parecia satisfeito, mas nem de longe eufórico. É seu trabalho, o que ele faz todos os dias. Cada cliente é um novo coração a ser lido e desvendado. Com botõezinhos diferentes a serem apertados. Tomamos outro chá pra pensar nos descontos. Consegui tirar um bocado do total, mas ainda assim paguei mais do que valia, suponho. Será que quando sabemos da trapaça e consentimos com ela somos menos bobos ou isso é desculpa de peidorreiro?

O pagamento virou outro problema. Não passava o valor todo no meu cartão, não em dólares. Pensei em fugir, abandonar aquilo tudo. Sem meu consentimento, ele passou tudo que pôde no cartão, e o que sobrou foi o valor do tapete. Senti alívio; talvez conseguisse escapar só com as caxemiras. Já estava meio arrependida daquele circo. Propus voltar depois pra pegar o tapete. Claro que não colou. Da soberba à ingenuidade: a cliente perfeita. Majeed calçou os sapatos, pegou minha mão e me levou pra fora do hotel, pela rua, por uma escada, entre carros, um pátio, uma galeria, um restaurante, até um banco. “Aqui você pode sacar”.

O caixa estava fora de serviço. Outra chance de fugir correndo. Mas e as caxemiras que tinham ficado na loja e pelas quais eu já tinha pago? Ele obviamente não se dissuadiu com o pequeno percalço, que na Índia chama-se cotidiano. Me levou dentro do banco, conversou com a atendente, que nos mandou esperar um pouco. Esperamos 10, 15 minutos. E nada aconteceu. Saímos em busca de outro caixa eletrônico. Ele ia pedindo informação com a mesma autoridade e desenvoltura, lá fora, que demonstrava dentro de sua loja. Saquei o dinheiro e voltamos pelo mesmo trajeto tortuoso e fabuloso até a entrada lateral do hotel. Paguei o resto.

Enfiei os pés descalços nas havaianas e peguei minhas sacolas. Ele me entregou um folder da Caxemira com seu telefone anotado. Olhar sem vacilo. Me mostrou, num álbum de fotos, Bill Clinton comprando com ele, apertando sua mão. “Você vai comigo no meu estoque”, afirmou, mais uma vez com minha mão entre as suas.“É lindo. Tomaremos chá. Sem pressão, você não precisa comprar nada. Chegando lá pode se convencer do contrário, mas…”. Interrompi-o. Seus assistentes riram alto. Eles vinham rindo o tempo todo pelos cantos. De mim e da situação toda. Majeed também riu. Todos rimos. “Eu não compro mais nada!”, conclui. Mas prometi voltar no dia seguinte para o chá.

Mercado

Mercado Municipal de São Paulo, dupla exposição, 2011, by Maria Bitarello

 

Petit Santôs

Semana passada, voei pela primeira vez na Emirates Airlines, o George V da aviação. A nécessaire de bordo traz amostras da Bulgari. Pode-se usar o iPhone durante o voo. O cockpit-assento-cama tem colchonete para amaciar o sono e a vida, aberto em 180 graus completos. As refeições são servidas em louça. A bebida é liberada. Os comissários adoráveis. O teto é mais alto, e o piloto, exímio. Só não pode fumar. Nunca fui tão bem tratada no ar, quiçá na terra. Foram 14 horas de voo até Dubai; 12 de sono. Eu já vinha pensando em escrever sobre o aviador mineiro, diante da data comemorativa de 106 anos do voo do 14-bis. E as coincidências me levaram à Índia, de Emirates, justo a tempo.

No dia 23 de outubro de 1906, Santos Dumont realizou o primeiro voo público da história em um objeto mais pesado que o ar com propulsão própria. Ou seja, decolou e pousou por meios próprios; não foi um salto de asa-delta/planador, foi realmente uma decolagem. Ele fez isso no Campo de Bagatelle, em Paris. Foi um voo curtinho. Ele percorreu 60m em 7 segundos, a 2 metros de altura do solo, numa geringonça de 290kg com motorzinho de 5 cavalos.  Levou 3 mil francos, na época. Fez história.

Santos Dumont era mineiro. De uma cidade ao lado da minha. Hoje o lugar leva seu nome e a casa onde ele nasceu – e que mais tarde veio a comprar – é o Museu do Cabangu. Nasceu ali, mas cresceu no interior de São Paulo e passou grande parte da vida adulta em Paris. Quando abandonou a aviação, desgostoso, voltou para o Brasil e comprou a propriedade mineira, onde começou a criar gado holandês. E no fim, morreu em Guarujá, três dias após seu aniversário de 59 anos. Não viu a guerra. Nem a luftwaffe, os mísseis, a Endeavor e muito menos a Emirates. Cabeça aberta e curioso quando jovem, apaixonado pelas descobertas, Santos Dumont  com o tempo virou um recluso, amargurou-se. Suspeito que não gostaria do spa aéreo em que se transformou a aviação de luxo. Seu interesse pelas aeronaves talvez acabasse ali com os B-52’s. Vai saber.

Em 2006, colaborei com a pesquisa e redação do livro Santos Dumont: retorno às origens – A vida do pai da aviação em sua terra natal, de Isabel Pequeno e Sergio Bara, grandes amigos e colegas de trabalho. Um apanhado de fotografias, cartas, objetos pessoais e relatos até então inéditos, cujos cuidados estão nas mãos da Fundação Casa de Cabangu, detentora de um rico acervo.

Entregue as últimas páginas do livro e ainda naquele mesmo ano do centenário do infame voo do 14-bis, fui a Paris. Era minha primeira vez. E fui pautada para escrever uma matéria sobre a data do 23 de outubro. Virou um roteiro de viagem à Paris do petit Santôs. Texto e imagens contrapunham a cidade de então com a de hoje, de maneira biográfica. O Campo de Bagatelle; o Musée de l’Air et de l’Espace no Aéroport du Bourget – onde está a réplica do simpático aviãozinho e de outros modelos, como a Demoiselle –; a Villa Santos Dumont; o edifício onde ele viveu no 17ème arrondissement; o hotel atrás da Torre Eiffel, onde caiu com seu dirigível; a Maison Cartier, na Champs-Élysées, onde ainda residem amostras de uma edição limitada do relógio de pulso desenhado sob encomenda pela grife para o aviador. O primeiro relógio de pulso da história. São muitas as histórias.

A matéria saiu, mas Paris ficou. Ainda voltei muitas vezes, até me mudar pra lá. Hoje a cidade é outra no meu imaginário; o carinho é maior. No entanto, fica sempre uma lembrança bonita daquela primeira vez, daquele primeiro amor, da descoberta de suas esquinas enviesadas com a aviação mineira. Atenta às coincidências e ao acaso, foi numa dessas que fui parar na casa de mais um mineiro em Paris, que me acolheu e me fotografou. Sua família era de Santos Dumont. Não pude ignorar. Chamei-o pra pauta e ele aceitou.

Entrou pra matéria e pra minha vida. Porque o sentido das coisas somos nós que atribuímos. Sinais só existem quando percebidos. Para ganharem vida, devem ligar-se às pessoas e a suas histórias. Só assim cabe, numa mesma crônica, a Índia, a Emirates e a Paris de Santos Dumont.

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Perdidos em Bois de Boulogne, Paris (2006), by Maria Bitarello

 

Dia das Crianças

Dizem que todo mundo para de amadurecer a uma certa altura. Os anos passam, as velinhas começam a acumular, mas continuamos nos sentindo com a mesma idade. Seria o pico de nossa evolução emocional. A maioria dos adultos a quem já perguntei sobre isso responde que esse momento foi ali por volta do final da adolescência, início da década de 20. Essa semana falei com minha tia que mora em Los Angeles e me lembrei de sua resposta, dada uns anos atrás. “Seis”, disse com calma, sabendo a resposta desde sempre, mas sem nunca antes ter tido a oportunidade de dizê-la a alguém. “Seis anos”.

Crianças desta idade não são mais bebês. Falam muito, leem pouco, têm plena coordenação motora e já entendem alguns sentimentos abstratos. Respeitam leis ao seu redor e percebem que não podem mais fazer o que querem. Evolui seu senso de autopreservação, da queda que machuca, do perigo. Também já entendem uma parte grande do que se passa entre os adultos. Captam nuances. Escutam segredos. Sentem medo, angústia. Reconhecem a existência do futuro e do passado, ainda que o presente seja o rei do dia. De todos os dias.

Minha vizinha tem duas filhas pequenas. A menor é a Dunya. Tem quase um ano e faz pouco estava descobrindo a extensão do seu próprio corpo, olhando os dedos de suas mãos, maravilhada, mexendo-os no ar, em propriocepção. Agora está quase andando. A mais velha fez 5 anos em julho e se chama Muxima. Já não manipula a irmã como uma boneca. Sabe que ela é pequena, que deve ser tratada com cuidado e vem, aos poucos, percebendo que não é mais a fofinha bajulada de outrora, que o olhar dos adultos para ela mudou. Sobretudo quando vê os mimos concedidos à irmã. Às vezes retrocede nos gestos, faz-se bebê, infantiliza-se porque quer carinho e proteção.

Uma grande amiga veio me visitar com seu pequenino de quase 1 ano e meio, Nuno. O rapazinho anda sozinho, sabe pedir e ir atrás das coisas. Logo, o mundo de possibilidades de realizações de seus desejos parece infinito. Lá em casa, tentava matar o tédio arremessando potinhos de plástico dentro da privada e esvaziando o saco de arroz no chão da cozinha. Mas assim que minha vizinha chegou com as duas pequenas, largou os potinhos e abriu um sorriso do tamanho de sua satisfação. Sabia o que queria. Aproximou-se com entusiasmo não contido, laçou seus braços ao redor da garotinha de cabelos cacheados e lascou-lhe um beijo na boca. Segurou a cabeça da Muxima contra a sua pra que não se esquivasse de seu afeto desajeitado. Ela, lembrando do que a mãe havia lhe ensinado sobre os cuidados com os menores, saiu-se bem, com elegância. Virou o rosto de lado. Segurou-o a meia distância. Sem força, sem raiva. Ele insistiu. Inclinou o corpo pra frente. Seus olhos brilhavam, os dentes, esparsos, estavam todos à mostra, tamanho era o sorriso. Puxou os cabelos da amada, não como tática de guerra. Era vontade.

Não deu certo. Partiu então pra irmã. Dunya engatinhava sobre o tapete e ele queria subir em suas costas, ainda frágeis, de bebê. Impedido pelos adultos, improvisou. Arremessou-se ao chão diante da infante sobre os quatro membros, deitou e abriu o peito e os braços, como um pavão apaixonado. Ria. Gargalhava. Diante das explicações de sua mãe sobre o que podia e o que não podia ser feito com as duas meninas, ele parecia entender apenas uma parte. Estava sendo repreendido, sim, ele entendeu. Olhou para baixo. Fez cara de culpado. Mas tão pronto avistou as meninas de novo, era todo sorriso e amor afoito. Não via mal algum no que fazia.

Saí pra comprar um belisco e, na esquina, um habitué boêmio do Bar do Seu Zé – e figurinha fácil no bairro – foi interrompido em sua conversa de boteco quando uma mulher parou o carro no meio da rua e começou a esbravejar da janela. Gritou obscenidades, grosserias. Desceu, arrancou do corpo do amado a camiseta que ele vestia e foi-se embora. Quando saí com as empanadas na mão, ele estava desnudo da cintura pra cima. Inabalado, aparentemente. Tomava sua cerveja sem pressa. Voltei com a comida e entrei em casa justo a tempo de ouvir a pergunta da Muxima a sua mãe, em um diálogo em andamento: “O quê que é sofrimento?” Nem ouvi a resposta. A pergunta bastou.

Vejo na Muxima um equilíbrio raro que logo vai passar. Está ali, cúspide, entre o laissez-faire da primeira infância inconsequente e a absorção das leis adultas a seu redor. Fluente entre dois mundos, bilíngue. Sempre atenta. Aprende sobre o desejo e o sofrimento, querer e não poder; sobre crescer. Só que seu instinto ainda é mais forte.

“Com seis anos, era o mais sábia que já fui. Sabia o que queria, o que me fazia feliz. Sabia o que não queria, mesmo que o fizesse por obrigação. Respeitava a mim mesma, não me atropelava; não me passavam em branco as coisas. Estava atenta. Sagaz. Comprometida”, foi a continuação da resposta da minha tia, àquela pergunta inicial. “Tento sempre me reconectar àquela menina que fui. Hoje, adulta. Porque ela sabia o que era melhor para nós.”

Para a Muxima, meus votos de um feliz dia das crianças são uma forma de pacto. Comigo e com ela. Que ela não quebre as promessas feitas à menina de hoje. Que honre seus sonhos, respeite seus desejos e também seus limites. Que use a maturidade, quando vier, a seu favor, como facilitador. Que a lei não amordace seu instinto. E que me ajude a fazer o mesmo.

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