Dia das Crianças

Dizem que todo mundo para de amadurecer a uma certa altura. Os anos passam, as velinhas começam a acumular, mas continuamos nos sentindo com a mesma idade. Seria o pico de nossa evolução emocional. A maioria dos adultos a quem já perguntei sobre isso responde que esse momento foi ali por volta do final da adolescência, início da década de 20. Essa semana falei com minha tia que mora em Los Angeles e me lembrei de sua resposta, dada uns anos atrás. “Seis”, disse com calma, sabendo a resposta desde sempre, mas sem nunca antes ter tido a oportunidade de dizê-la a alguém. “Seis anos”.

Crianças desta idade não são mais bebês. Falam muito, leem pouco, têm plena coordenação motora e já entendem alguns sentimentos abstratos. Respeitam leis ao seu redor e percebem que não podem mais fazer o que querem. Evolui seu senso de autopreservação, da queda que machuca, do perigo. Também já entendem uma parte grande do que se passa entre os adultos. Captam nuances. Escutam segredos. Sentem medo, angústia. Reconhecem a existência do futuro e do passado, ainda que o presente seja o rei do dia. De todos os dias.

Minha vizinha tem duas filhas pequenas. A menor é a Dunya. Tem quase um ano e faz pouco estava descobrindo a extensão do seu próprio corpo, olhando os dedos de suas mãos, maravilhada, mexendo-os no ar, em propriocepção. Agora está quase andando. A mais velha fez 5 anos em julho e se chama Muxima. Já não manipula a irmã como uma boneca. Sabe que ela é pequena, que deve ser tratada com cuidado e vem, aos poucos, percebendo que não é mais a fofinha bajulada de outrora, que o olhar dos adultos para ela mudou. Sobretudo quando vê os mimos concedidos à irmã. Às vezes retrocede nos gestos, faz-se bebê, infantiliza-se porque quer carinho e proteção.

Uma grande amiga veio me visitar com seu pequenino de quase 1 ano e meio, Nuno. O rapazinho anda sozinho, sabe pedir e ir atrás das coisas. Logo, o mundo de possibilidades de realizações de seus desejos parece infinito. Lá em casa, tentava matar o tédio arremessando potinhos de plástico dentro da privada e esvaziando o saco de arroz no chão da cozinha. Mas assim que minha vizinha chegou com as duas pequenas, largou os potinhos e abriu um sorriso do tamanho de sua satisfação. Sabia o que queria. Aproximou-se com entusiasmo não contido, laçou seus braços ao redor da garotinha de cabelos cacheados e lascou-lhe um beijo na boca. Segurou a cabeça da Muxima contra a sua pra que não se esquivasse de seu afeto desajeitado. Ela, lembrando do que a mãe havia lhe ensinado sobre os cuidados com os menores, saiu-se bem, com elegância. Virou o rosto de lado. Segurou-o a meia distância. Sem força, sem raiva. Ele insistiu. Inclinou o corpo pra frente. Seus olhos brilhavam, os dentes, esparsos, estavam todos à mostra, tamanho era o sorriso. Puxou os cabelos da amada, não como tática de guerra. Era vontade.

Não deu certo. Partiu então pra irmã. Dunya engatinhava sobre o tapete e ele queria subir em suas costas, ainda frágeis, de bebê. Impedido pelos adultos, improvisou. Arremessou-se ao chão diante da infante sobre os quatro membros, deitou e abriu o peito e os braços, como um pavão apaixonado. Ria. Gargalhava. Diante das explicações de sua mãe sobre o que podia e o que não podia ser feito com as duas meninas, ele parecia entender apenas uma parte. Estava sendo repreendido, sim, ele entendeu. Olhou para baixo. Fez cara de culpado. Mas tão pronto avistou as meninas de novo, era todo sorriso e amor afoito. Não via mal algum no que fazia.

Saí pra comprar um belisco e, na esquina, um habitué boêmio do Bar do Seu Zé – e figurinha fácil no bairro – foi interrompido em sua conversa de boteco quando uma mulher parou o carro no meio da rua e começou a esbravejar da janela. Gritou obscenidades, grosserias. Desceu, arrancou do corpo do amado a camiseta que ele vestia e foi-se embora. Quando saí com as empanadas na mão, ele estava desnudo da cintura pra cima. Inabalado, aparentemente. Tomava sua cerveja sem pressa. Voltei com a comida e entrei em casa justo a tempo de ouvir a pergunta da Muxima a sua mãe, em um diálogo em andamento: “O quê que é sofrimento?” Nem ouvi a resposta. A pergunta bastou.

Vejo na Muxima um equilíbrio raro que logo vai passar. Está ali, cúspide, entre o laissez-faire da primeira infância inconsequente e a absorção das leis adultas a seu redor. Fluente entre dois mundos, bilíngue. Sempre atenta. Aprende sobre o desejo e o sofrimento, querer e não poder; sobre crescer. Só que seu instinto ainda é mais forte.

“Com seis anos, era o mais sábia que já fui. Sabia o que queria, o que me fazia feliz. Sabia o que não queria, mesmo que o fizesse por obrigação. Respeitava a mim mesma, não me atropelava; não me passavam em branco as coisas. Estava atenta. Sagaz. Comprometida”, foi a continuação da resposta da minha tia, àquela pergunta inicial. “Tento sempre me reconectar àquela menina que fui. Hoje, adulta. Porque ela sabia o que era melhor para nós.”

Para a Muxima, meus votos de um feliz dia das crianças são uma forma de pacto. Comigo e com ela. Que ela não quebre as promessas feitas à menina de hoje. Que honre seus sonhos, respeite seus desejos e também seus limites. Que use a maturidade, quando vier, a seu favor, como facilitador. Que a lei não amordace seu instinto. E que me ajude a fazer o mesmo.

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