Não sou muito ligada em datas comemorativas. E sou particularmente desinteressada por celebrações de 7 de setembro. Não me lembro nunca de ter assistido a uma parada militar. Vai ver me falta uma relação afetiva com os feriados, pois o único do qual me lembro vividamente é o 7 de setembro de 2001, em Washington D.C. As universidades federais brasileiras estavam em greve e eu, no segundo período de jornalismo, decidi tirar um período sabático para visitar minha mãe nos Estados Unidos. O imperativo maior, contudo, foi o Morse. Por causa dele, passamos o 11 de setembro na capital. Eu e minha irmã, que ainda estava no colégio. E, graças a ela, seis meses atrás, conheci Matthew Shirts.
Naquele Dia da Independência, amigos e familiares de Richard M. Morse se reuniram na universidade e depois em sua antiga residência para celebrar sua vida e obra. O ilustre professor e mestre havia falecido em abril daquele mesmo ano, deixando saudades. Morse foi orientador de doutorado e grande mentor intelectual da minha mãe. Era um respeitado brasilianista: um gringo que estuda o Brasil. Escreveu, dentre outros assuntos, sobre a cidade de São Paulo, que hoje chamo de lar. Era amigo de uma turminha fascinante: Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Octavio Paz, para citar os indiscutíveis. E, em 1992, persuadiu, sem grandes esforços, minha mãe a pesquisar a América sob sua tutela.
Essa é a história de como nós três – eu, minha mãe e minha irmã – fomos para D.C. pela primeira vez. E passados quase 20 anos desde aquela viagem e 11 de sua partida, as piadas do professor ainda recheiam nossas conversas mais animadas, um de seus manuscritos originais repousa no escritório da minha mãe em Minas e a “máfia do Morse” segue ativa.
A expressão não é minha, é do meu chefe. “Quem é esse cara?”, foi o que perguntei, anos atrás, apontando o nome dele no verso de uma caneca misteriosa que residia no armário da cozinha da minha casa. “Um amigo do Morse, que mora aqui no Brasil. Ele me pediu pra entregar a caneca, mas nunca encontrei com o Matthew. Ele mora em São Paulo”, minha mãe respondeu. A caneca foi ficando; certa vez caiu no chão e não quebrou. Até que foi a vez da minha irmã aparecer com o desdobramento da pergunta. “Mãe, você conhece o Matthew Shirts?”, ela perguntou olhando a mesma caneca. “Vi ele uma vez só”. “Mãe, ele é o editor-chefe da National Geographic Brasil!”
É claro que ela sabia quem era o cara da caneca. Minha irmã começou a ler cedo, e lia muito. Sua biblioteca da primeira infância era composta de revistas da Turma da Mônica, relíquias hoje empoeiradas em caixas de leite. O passo seguinte foram as revistas National Geographic – algumas datando da época em que ainda se chamava Geográfica Universal, da coleção do meu avô. As linhas amarelas que emolduram a capa formavam um portal para o futuro fantástico em que ela faria descobertas fósseis na África e usaria roupas cáqui em acampamentos científicos. Porque, pra ela, não era só uma revista, era um sonho. O sonho de se tornar paleontóloga, uma cientista.
Quando me mudei para São Paulo, o Matthew foi a primeira pessoa que procurei. Porque aquela caneca pedia fechamento, ou quem sabe continuidade. “Tenho algo que te pertence”, eu disse a ele sorrindo, “e acredito que temos um amigo em comum.” Dois dias depois, ele me ofereceu trabalho. Aceitei. E agora o vejo todos os dias na redação. Ele e a caneca, que descansa em sua mesa. A “máfia do Morse” é coisa dele. E no final de junho, nós, mafiosos, jantamos juntos na Vila Madalena.
Eu não sonhava em ser cientista como minha irmã, mas me deliciava com histórias. Com as narrativas que os encontros contam; os pontos invisíveis que ligam episódios. Porque como disse Proust, “cada memória é inseparável do momento em que é recordada”. Sem Morse, eu não lembraria de nenhum 7 de setembro. Sem minha irmã, não conheceria Matthew. E sem eles, a caneca branca não daria uma história.
Outono em Capitol Hill, Washington D.C., Estados Unidos, by Maria Bitarello