O cheiro das baleias

No final do feriado, voltando para São Paulo de ônibus, vi muitas queimadas na beira da estrada. Uma atrás da outra. Algumas erráticas, como é da natureza do fogo que se alastra; outras ordenadas, desenhando linhas que entregam a intenção por trás daquele ato de devastação. Por vezes sentimos o calor das labaredas; ouvimos seus estalos. O fogo dá medo e fascina. Não dá pra saber quando ele já ultrapassou o ponto de controle e quando ainda dá pra evitar uma catástrofe.

Olhando pela janela do ônibus na madrugada, fui levada, sem meu consentimento, à Califórnia, onde as temporadas de queimadas costumam durar uma boa parte do verão. O fogo se alastra por hectares e pelas semanas.  Morei em Los Angeles, mas de lá não via o fogo, somente seu rastro. Fuligem. A poeira cinza sobre os carros. O ar turvo, irrespirável. O calor não arrefece à noite, e as madrugadas de 35˚C acontecem mais de uma vez. Não há umidade, a garganta seca, os olhos irritam. O mundo parece arder sob o céu, e o pôr-do-sol neste inferno é de uma beleza marciana: de trás das nuvens espessas, o Sol, vermelho, incandescente. Seu contorno circular através do filtro de fumaça é nítido como se fosse feito a pinceladas.

No verão de 2008, viajei para São Francisco de carro pela PCH – Pacific Coast Highway, ou simplesmente Highway 1. A paisagem muda gradualmente do deserto angelino para a umidade enevoada da baía. Entre eles, vinícolas, litoral e as colinas amareladas de San Luis Obispo, entremeadas por bosques de um verde mais intenso. Da estrada, vê-se o castelo de William Randolph Hearst, o magnata das comunicações americanas, inspiração para “Cidadão Kane” de Orson Welles. O caminho pela costa contorna a barriga litorânea que se insinua sobre o Pacífico. Ali no meio, estreita e tortuosa, a estrada se espreme em uma beleza só sua, tão distinta da que vemos nos trópicos.

Com a proximidade de Big Sur, surgem rochas monumentais nas praias. No som do carro, Beatles. Do outro lado da pista, a borda de Los Padres National Forest. As queimadas corriam paralelas, pelo interior do parque, longe do meu olhar, mas pintando o céu de laranja, num entardecer que eu insisto em não esquecer. O calor era abrasivo. E o caminho foi interrompido. Sem forma de prosseguir ou contornar, só pude voltar atrás. Mais de 200 km até a última parada avistada. Cheguei junto com os últimos raios de Sol daquele dia de junho, os mesmos que confundem motoristas no lusco-fusco.

O frentista se orgulhou ao encher o tanque do meu carro com “a gasolina mais cara da América”, foram suas palavras. Atrás dele, um restaurante e uma pousada, simpáticos embora ordinários, davam o tom de raridade daquela parada: preços exorbitantes. Não havia muita gente passando por ali. Não era rota pra lugar algum. E passei uma noite no quarto, lá no alto, empoleirado sobre o restaurante. Abaixo deles, a estrada, e logo o Pacífico, ao infinito. Cada um a poucos metros do seguinte. Whale Watchers Café, dizia a placa. Nas épocas certas do ano, os turistas mais informados que eu sabiam que aquele era um ponto privilegiado para observação da migração sazonal de baleias.

Senti-me afortunada. Queria chegar a Big Sur, conhecer mais um lugar por onde passou Jack Kerouac. Mas no meio do caminho havia fogo e baleias. Nem liguei de não ser temporada de migração, só de queimadas mesmo. Já estava ali, senti que ali deveria estar. Da minha janela, olhei o mar durante a noite, e na manhã seguinte contornei a floresta, por Paso Robles, antes de voltar a rumar norte. Nunca mais ouvi falar desse lugar. Nunca mais paguei US$ 6 pelo galão de gasolina.

Cada um tem a madeleine que merece. Para Proust, foi o bolinho que o transportou à infância. Para Hearst, o cidadão Kane, foi o trenó, rosebud. “The more you remember something, the less accurate the memory becomes (…) If you prevent the memory from changing, it ceases to exist” (Quanto mais você recorda, menos precisa se torna a memória (…) Se você impedir a mudança de uma lembrança, ela deixa de existir), li esses dias no livro de Jonah Lehrer, “Proust foi um neurocientista”.

Aquela foi a mais bela viagem de carro que já fiz. Ou então é minha memória, danada, que me prega peças. Que não me corta quando embelezo certos pontos e omito outros. Que me deixa mentir, criar, inventar. Lembranças são sorrateiras, nos tomam de assalto. Às vezes, até com cheiro de madeira queimada. Outras com “Two of us”, dos Beatles. “You and I have memories, longer than the road that stretches out ahead” (Eu e você temos memórias mais longas que a estrada que se estende à nossa frente). Numa travessia à beira mar em que deu tempo de retroceder e contornar as chamas, estranhamente, eu andava para frente. E não andava só.

Vista do Whale Watchers Café na Pacific Coast Highway – Califórnia, Estados Unidos, by Fábio Nascimento

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