Hameau é uma palavra francesa que nomina um aglomerado tão pequeno de moradias que não chega a ser uma vila ou aldeia. Não há igreja e a pedra fundamental desta micro-comunidade foi, tradicionalmente, uma fazenda. Viajando pelas estradas menos movimentadas da França, são muitos os hameaux, nem sempre designados por placas. Cinco, quatro, três e até duas casas podem ser a totalidade de um hameau. Uma singularidade francesa que nos fala de uma demanda particular. De uma cultura erguida sobre alicerces rurais.
Há pouco vi o documentário “Ibitipoca, droba pra lá”, de Felipe Scaldini, um conterrâneo meu. O filme tem como locação um lugarejo próximo a nossa cidade. Ele mostra a região; dá voz a pessoas dali. Ibitipoca é muito familiar aos quem vêm da Zona da Mata mineira. Crescemos indo lá. E nossos pais antes de nós. Antes de haver um parque nacional. Antes de haver giftshop, mapas e guias. Quando não era certo de chegar; dependia das chuvas, do barro. Quando o habitante do arraial era dali, desde sempre. Quando só tinha um orelhão. E muitos cachorros, em bando. Hoje o lugar cresceu, tem muito mais infraestrutura e atraiu muita gente interessada em viver ou passear no mato. Já deve ter até internet. Scaldini foi atrás das pessoas que ainda estão lá, margeando pousadas e centros de informação ao turista. Elas nos falam do que mudou, do que permanece.
Minas e França têm quase o mesmo tamanho. O mar de morros que ondula no interior mineiro replica a sequência de fazendas e áreas cultivadas do interior da França. Cidadezinhas. Uma atrás da outra. Respeitando-se as devidas diferenças históricas e arquitetônicas, está claro. E mineiros e franceses têm suas semelhanças. São dados a longas horas na mesa do almoço, à apreciação de comes e bebes sem economia de calorias e vísceras de animais. É verdade que desconfiam do diferente, mas a abertura que concedem aos de casa não tem reservas. Afinal, um convidado nunca é mandado embora e nunca se vai antes do café. São ambos apegados à maneira correta de fazer as coisas, ao vinho ou à cachaça. A não ter pressa. A deixar as coisas tomarem o tempo que demandarem. A contar caso. Há quem diga ser preguiça, mas eu chamo de gozo pela vida. Afinal, correr pra quê e até onde? A pressa atrapalha o zelo pelas coisas, tira o regozijo do fazer. E mineiros e franceses fazem bem feito e, preferencialmente, com deleite. Gostam da terra, de ficar no mesmo lugar, de saber da sua história.
Dizem que na literatura existem dois narradores: o marinheiro e o camponês. O primeiro viaja o mundo e conta do que viu. É estrangeiro, é imigrante, é náufrago. Sua condição é o exílio. Sua sina, não pertencer. Um observador condenado. O segundo é o que fica. Que vê o forasteiro visitar suas terras. Que vê as chegadas e partidas sempre do mesmo lugar. Ele sabe de si e do seu povo. Se confunde com a própria terra. Porque passou a vida inteira no mesmo lugar, e isso ninguém tira dele. Esses dois narradores, dizem, dão conta de todas as histórias contadas. Eles são os narradores de fundação.
O fotógrafo e cineasta francês, Raymond Depardon, é um camponês. Essencialmente. Cresceu no campo, vem de uma família de camponeses. Fala de casa, fala dos seus. Quem assiste a seus filmes, vê suas fotos, se encontra no mais particular do outro. Porque o íntimo é sempre humano. E o humano é universal. Pensei muito no Depardon esses dias, em seus “Profils Paysans” (Perfis camponeses), sua trilogia sobre a região onde cresceu. Belo. Simples. Tocante. São lentas as longas horas com os personagens, visitados por Depardon ao longo de mais de 10 anos. Ele saiu de lá, quando moço, mas ouço desde criança que o campo não sai de nós. Depardon é impregnado da campagne francesa.Porque conhece seu ritmo, tomou para si a década de que precisou. Se aproximou, penetrou, viu de novo o lugar de onde veio, como um estrangeiro na própria casa. Um mergulho no útero de onde saiu. E isso requer coragem. Mais – muito mais –, penso eu, do que para sair.
Dada à inquietude, tenho o hábito de partir. E, nessas idas e vi(n)das, fui parar na França. As Minas da Europa. Um exílio aconchegante, mas temporário, visto que navegante sofre de um mal. Pertencimento é terra à vista. Quando se toca o solo, é hora de partir de novo. Uma coceira sem fim. Lar parece estar sempre ali, logo ali. Na próxima parada. Mas não passa de miragem do viajante dos mares, de uma prisão dos desassossegados. Assim, deixei, também, a França, mas ela veio comigo. Entrou sob minhas unhas e ficou. Como terra avermelhada. Até Minas Gerais.
Céu no interior da França (Auvergne, 2010), by Maria Bitarello