Minimalismo contra o capitalismo

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Por quase 3 anos, morei em casal em uma quitinete de 24m2, no último andar de um predinho em Paris. Um cômodo, uma cozinha separada por uma parede, um banheiro. Na cozinha, uma placa elétrica de duas bocas, um pequeno forno também elétrico, um mini-frigobar, pia simples, pouco espaço pra utensílios e também pra comida. As compras eram feitas gradualmente e repostas à medida que eram comidas; não dava pra estocar nada. Pra cozinhar, era preciso ir lavando, secando e liberando a única superfície sobre a pia que servia tanto pro escorredor quanto pra tábua. O quarto era simbolicamente dividido por uma estante; de um lado a cama, do outro a mesa de trabalho, tipo escritório. Havia uma poltrona, uma luminária, um violão, livros, um espelho, uma cortina separando a cozinha. O guarda-roupa embutido tinha três portas baixas; uma delas pra mim. E só. Todas as minhas roupas estavam no espaço de arara que me cabia ali naquela porta, algumas dobradas embaixo, um único par de botas pra todas as ocasiões. No térreo, uma bicicleta. O aluguel era barato, o bairro delicioso, a vida descomplicada.

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É sempre hoje

Robert Pirsig abre o posfácio da edição que eu tenho do livro “Zen e a arte de manutenção de motocicletas” contando que, na Grécia Antiga, a noção de tempo era a inversa da que conhecemos hoje no Ocidente. Ou seja, caminha-se para o futuro de costas, pois o futuro é desconhecido. E o passado está à nossa frente, aquilo que podemos ver. Não sei você, mas eu acho essa percepção do tempo bem mais fidedigna ao que experimentamos empiricamente na vida do que a ideia de que o futuro está adiante e o passado, atrás. Do passado sabemos – ao menos uma parte –, embora a memória seja uma faculdade criativa sempre em construção, alterando sem cessar nossa percepção do que passou. E o futuro, quem sabe dele?

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Iya Shango

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« Todo tempo é susceptível de virar um tempo sagrado;
a todo momento, a duração pode ser transmudada em eternidade. »
« In illo tempore, nos tempos míticos, tudo era possível. »
Mircea Eliade

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A repetição do cotidiano, massacrante a princípio, sublima, pelo cansaço, seus agentes. Gestos e saudações que repetem, ao infinito, o ato criador, a origem da aldeia, da tribo, do mundo. Aldeia : centro do mundo. No ato de cozinhar, de cantar, de reverenciar está sempre, por detrás, o gesto original e criador : o gesto mesmo do divino, que se atualiza no presente através do homem, trazendo o tempo sagrado, o tempo do mito para o tempo profano a qualquer momento, sem aviso, sem censura. Não é só no rito que o tempo sagrado se regenera, mas todos os dias, de novo, e de novo, e de novo.

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As crianças, assim que saem das costas das mães, andam em bando, uma comunidade de infantes que garantem eles próprios seus cuidados. A princípio nus, depois vestidos; primeiro dormindo nas costas da mãe, depois na da irmã ou prima ou vizinha ou nenhuma delas, por fim andando, correndo. As mulheres estão sempre a trabalhar, costas arqueadas em direção ao chão, na limpeza, na cozinha, incessantes e incansáveis provedoras que buscam água, acendem o fogo. Os homens agraciam-se, uns aos outros, com o carinho e o toque que não se vê entre um homem e uma mulher, um homem e suas mulheres. Observam, da sombra. Homens que são.

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Na perfeita ordem do universo, que do caos de suas partículas restabelece o sentido, elimina o sobressalente, realinha os elementos. Caos, como um átomo visto de fora, elétrons a se chocarem, um centro nuclear inatingível, e a energia entre os dois. Alguns elétrons que são bombardeados para fora da unidade, nucléolos em explosão, convulsão, catarse. O som percussivo pulsa, bate, ataca, repele, seduz, conduz, alucina, sublima. Cala.

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Desfaz-se o centro, dissipa-se a energia. E de repente o caos parecia muito mais coreografado que a apatia que se segue, olhares que voltam-se uns para os outros, tambores silenciosos, corpos sem espasmos, poeira assentada, Céu e Terra desgarrados. A energia – puf! – sumiu, não está mais ali. Está em todo lugar, está em outro lugar. A vivência do divino é tão real quanto a terra vermelha embaixo das unhas. Vivência para uns, testemunho para outros. Como foi ontem e será amanhã, desde sempre, para sempre, como sempre, não se conta o tempo. Há quem esteja, mas aqui é.

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Kétou é o centro do mundo.

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Photographed in Kétou, Benin, in January 2009.

Photos by
Maria Bitarello and Fábio Nascimento.
Texto: Maria Bitarello
A film by Nuno Aires.
Sound by Camille Barrât.

Exhibition at Galérie Goutte de Terre,
in Paris, in the spring of 2011.

Link

Summer Delight is a multimedia installation that dialogues with concepts of time, space, storytelling and randomness through still and moving images and sounds. Six flat screens display, in arbitrary order, a series of images at random time lapses. The text is divided in 16 pieces that are randomly narrated, through the central 5.1 channels sound system, interposed with moments of silence. Other four stereo sound systems are disposed in the same occupied space, playing the background sounds (internal and external), creating an immersive atmosphere for the narrative.

You can see here a linear video version of the installation and also the still frames and the text.

Summer Delight foi concebido como uma instalação multimídia de imersão, onde o diálogo entre tempo, espaço, movimento e aleatoriedade acentuam a experiência narrativa do espectador. Adaptado do conto “Don and Dean’s Summer Delight”, de Maria Bitarello, este trabalho pretende explorar os limites entre a narrativa literária e sua representação audiovisual. Em uma sala escura 6 telas planas dispostas na sala mostram, em ordem aleatória, uma serie de imagens de duração variada. O texto foi editado em 16 partes independentes que são narradas de forma randômicas através de um sistema de som central 5.1, intercalados com momentos de silencia. Outros 4 sistemas de som estéreo são instalados no mesmo espaço, tocando os sons ambientes e criando assim uma atmosfera imersiva para a narrativa.

O vídeo linear apresentado aqui é um dos desdobramentos desta pesquisa que busca as relações entre texto e imagem.

Project: Vinicius Berger
Story and Narration: Maria Bitarello
Assistant: Fábio Nascimento

O camponês e o marinheiro

Hameau é uma palavra francesa que nomina um aglomerado tão pequeno de moradias que não chega a ser uma vila ou aldeia. Não há igreja e a pedra fundamental desta micro-comunidade foi, tradicionalmente, uma fazenda. Viajando pelas estradas menos movimentadas da França, são muitos os hameaux, nem sempre designados por placas. Cinco, quatro, três e até duas casas podem ser a totalidade de um hameau. Uma singularidade francesa que nos fala de uma demanda particular. De uma cultura erguida sobre alicerces rurais.

Há pouco vi o documentário “Ibitipoca, droba pra lá”, de Felipe Scaldini, um conterrâneo meu. O filme tem como locação um lugarejo próximo a nossa cidade. Ele mostra a região; dá voz a pessoas dali. Ibitipoca é muito familiar aos quem vêm da Zona da Mata mineira. Crescemos indo lá. E nossos pais antes de nós. Antes de haver um parque nacional. Antes de haver giftshop, mapas e guias. Quando não era certo de chegar; dependia das chuvas, do barro. Quando o habitante do arraial era dali, desde sempre. Quando só tinha um orelhão. E muitos cachorros, em bando. Hoje o lugar cresceu, tem muito mais infraestrutura e atraiu muita gente interessada em viver ou passear no mato. Já deve ter até internet. Scaldini foi atrás das pessoas que ainda estão lá, margeando pousadas e centros de informação ao turista. Elas nos falam do que mudou, do que permanece.

Minas e França têm quase o mesmo tamanho. O mar de morros que ondula no interior mineiro replica a sequência de fazendas e áreas cultivadas do interior da França. Cidadezinhas. Uma atrás da outra. Respeitando-se as devidas diferenças históricas e arquitetônicas, está claro. E mineiros e franceses têm suas semelhanças. São dados a longas horas na mesa do almoço, à apreciação de comes e bebes sem economia de calorias e vísceras de animais. É verdade que desconfiam do diferente, mas a abertura que concedem aos de casa não tem reservas. Afinal, um convidado nunca é mandado embora e nunca se vai antes do café. São ambos apegados à maneira correta de fazer as coisas, ao vinho ou à cachaça. A não ter pressa. A deixar as coisas tomarem o tempo que demandarem. A contar caso. Há quem diga ser preguiça, mas eu chamo de gozo pela vida. Afinal, correr pra quê e até onde? A pressa atrapalha o zelo pelas coisas, tira o regozijo do fazer. E mineiros e franceses fazem bem feito e, preferencialmente, com deleite. Gostam da terra, de ficar no mesmo lugar, de saber da sua história.

Dizem que na literatura existem dois narradores: o marinheiro e o camponês. O primeiro viaja o mundo e conta do que viu. É estrangeiro, é imigrante, é náufrago. Sua condição é o exílio. Sua sina, não pertencer. Um observador condenado. O segundo é o que fica. Que vê o forasteiro visitar suas terras. Que vê as chegadas e partidas sempre do mesmo lugar. Ele sabe de si e do seu povo. Se confunde com a própria terra. Porque passou a vida inteira no mesmo lugar, e isso ninguém tira dele. Esses dois narradores, dizem, dão conta de todas as histórias contadas. Eles são os narradores de fundação.

O fotógrafo e cineasta francês, Raymond Depardon, é um camponês. Essencialmente. Cresceu no campo, vem de uma família de camponeses. Fala de casa, fala dos seus. Quem assiste a seus filmes, vê suas fotos, se encontra no mais particular do outro. Porque o íntimo é sempre humano. E o humano é universal. Pensei muito no Depardon esses dias, em seus “Profils Paysans” (Perfis camponeses), sua trilogia sobre a região onde cresceu. Belo. Simples. Tocante. São lentas as longas horas com os personagens, visitados por Depardon ao longo de mais de 10 anos. Ele saiu de lá, quando moço, mas ouço desde criança que o campo não sai de nós. Depardon é impregnado da campagne francesa.Porque conhece seu ritmo, tomou para si a década de que precisou. Se aproximou, penetrou, viu de novo o lugar de onde veio, como um estrangeiro na própria casa. Um mergulho no útero de onde saiu. E isso requer coragem. Mais – muito mais –, penso eu, do que para sair.

Dada à inquietude, tenho o hábito de partir. E, nessas idas e vi(n)das, fui parar na França. As Minas da Europa. Um exílio aconchegante, mas temporário, visto que navegante sofre de um mal. Pertencimento é terra à vista. Quando se toca o solo, é hora de partir de novo. Uma coceira sem fim. Lar parece estar sempre ali, logo ali. Na próxima parada. Mas não passa de miragem do viajante dos mares, de uma prisão dos desassossegados. Assim, deixei, também, a França, mas ela veio comigo. Entrou sob minhas unhas e ficou. Como terra avermelhada. Até Minas Gerais.

Céu no interior da França (Auvergne, 2010), by Maria Bitarello

Por acaso, o passado…

Se pensarmos a velhice como a constante presença do passado, e a infância como a estrita projeção do futuro, a vida deve ser o que acontece no meio, entre estas duas esperas; uma perda dos sonhos e um acúmulo sempre progressivo de memórias. O poeta mineiro, Murilo Mendes, tem uma frase em que diz que “a memória é uma construção do futuro, mais que do passado”, e a considero bastante pertinente se aplicada à leitura da peça de André Resende, Maçã caramelada, publicada pela Editora Cubzac (em uma edição digna de ser adquirida).

No texto – curto e pontual –, Eusébio, Greta e Adílio fazem de um encontro, ao acaso, em uma antiga emissora de TV, uma reconstrução do passado e uma recriação para o futuro. A partir do acervo da emissora, que está prestes a se perder, estes três personagens paradigmáticos pensam, conversam a respeito e nos fazem pensar – nós, os leitores – sobre a persistência da memória, o legado a que damos continuidade e que seguirá quando já não mais aqui estivermos, o mal-estar provocado por nossas escolhas e consequentes renúncias que implicam e o papel que o acaso, que a coincidência, tem em nossos encontros e trombadas entre a infância e a velhice, inclusive (e sobretudo) este que ocorre entre os três e que conduz Maçã caramelada.

Adílio, em busca das projeções da infância, nos obriga a repensar a construção da memória e se em nossas estórias existiu algum dia – ou existirá – a História, ou se não passam todas de interpretações, passíveis de cair nas peças em que nos prega a memória, tão esquecida e tão passível de criatividade espontânea, recriando-se. Seria por isso menos válida?

Greta personifica nosso mal-estar contemporâneo, nossa vertigem de possibilidades, a eterna indagação inútil sobre o caminho que não seguimos, as escolhas que não fizemos e a ansiedade que emerge de sua irrealização material, porém acompanhada de sua existência vívida em nossas projeções do que seriam memórias de um fato irrealizado. Reflexo e modelo do que passamos todos nós, homens e mulheres pós-modernos.

Eusébio amarra os dois extremos, o arrependimento e a insaciedade, a projeção e a nostalgia, em um personagem ciente de que “sem registrar os momentos da vida, o passado fica mais difícil de lembrar”, mas tampouco caindo na tentação de acreditar que “porque existe não quer dizer que é eterno”. E, acima de tudo, prezando e pregando o poder da coincidência, “a única coisa em que [conseguiu] acreditar e entender como possível”, “algo revelador das oportunidades que estão em nossa volta”, pois, justamente por “parecer acasos […], revelam um mundo desconhecido que, no entanto, não estava perdido, muito menos era inexistente”.

A chave

Tenho para mim que a chave está em Zaldok. O personagem que nunca sabemos ao certo se existiu, e muito menos quem foi, é uma pessoa distinta na memória de cada um, às vezes mais que um para uma mesma pessoa. Zaldok, personagem associado a valores mágicos de nossa infância, não envelheceu, não morreu, e tem acesso ao lugar onde nossa entrada não é permitida: o futuro.

Se para Eusébio “depois daquela maçã caramelada, tudo foi sorte na vida”, o autor nos diz também que, sim, ele, como nós, entende e sente a angústia da escolha, o medo do esquecimento, a preocupação com a memória no futuro, mas, acima disso tudo, está nos dizendo, nas palavras de Eusébio, que “[aceitemos] as coincidências”, que façamos do passado uma criação dinâmica no presente e uma reatualização no futuro, que deixemos as recordações museológicas de lado, pois não existe nossa História oficial. Seu (meu) passado está tão em transformação quanto o futuro, e aprisioná-lo no arquivo é privá-lo de vida, é assassiná-lo. A maçã caramelada é o presente de Eusébio a Adílio e Greta, é o presente de André Resende a nós.

 

* Esta resenha foi publicada no Le Monde Diplomathique Brasil de 13/03/2009.