O tempo das coisas

Nosso século, que tanto fala de economia,
é um esbanjador:
esbanja o mais precioso, o espírito.
Friedrich Nietzsche

Quando você vai preparar um chá, tem o tempo de fervura da água, o momento da infusão, a espera pelo resfriamento e só então a ingestão da bebida. Não dá pra mudar a ordem dos fatores nem o tempo que cada um deles demanda. A água só vai ferver a 100oC, a erva precisa de alguns minutinhos na água quente pra ser infundida e se você não esperar esfriar vai queimar a língua. As coisas têm seu tempo. E embora os tempos hoje sejam de afobação, o chá ainda toma o tempo que toma pra ficar pronto. E tudo indica que vai continuar sendo assim. Saber disso, no corpo e na alma, é o que eu chamo de sabedoria.

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Devaneios sobre a cultura do olhar

Semana passada meu padrasto americano estava em São Paulo e fomos tomar uma cerveja no bar da esquina aqui de casa. Ele comentou que gosta da maneira como as pessoas se olham em São Paulo. Que é muito diferente da forma como as pessoas se olham no interior de Minas, onde ele mora com minha mãe. Achei que faz total sentido. Sou uma entusiasta da prática de people watching, gosto de observar essas sutilezas, mas até então sempre as definia em termos culturais bem amplos. Brasileiros olham de um jeito, franceses de outro, americanos de outro, por aí vai. A observação dele me levou a ponderar também sobre as diferenças regionais. E no ato, no meio daquele copo de cerveja, soube que seria esse o mote pra minha crônica dessa semana.

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Congada São Benedito de Gonçalves

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Congada São Benedito de Gonçalves.
Gonçalves, Minas Gerais, Brasil – julho 2016.
Photos by Maria Bitarello.
Canon AE-1 / Kodak 400 TX

Mogol, o ninho da raposa amarela

A 33km de Ibitipoca, em Minas, está o arraial do Mogol. Antigamente, 15 casas eram habitadas, havia um bar. Hoje, 9 casas ainda abrigam famílias. A escola fechou. A igreja está de pé. Ela guarda as imagens dos santos que sobreviveram à queda da capela que havia no alto do Pico do Pião, dentro do Parque Estadual do Ibitipoca.

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Lucinha no alto do arraial com carro da Sauá Turismo

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Casa 1

As casas vazias continuam lá.

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Casa 2

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Lucinha

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Mogol de cima

Uma vez por mês, um médico visita o arraial. Pra fazer compras, as famílias esperam o ônibus para Lima Duarte, que sobe a cada 15 dias.

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Arraial sob a cruz

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Vista do alto

Os habitantes do Mogol têm um sotaque próprio; cantado. Gostoso que só.

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Lucinha

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Santos quebrados ao pé da cruz

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Nós que aqui estamos por vós esperamos

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Lucinha e o cemitério

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Casa 3

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Casas

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Cão e casa

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Casa 4

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Rita e Lucinha

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Casa 5

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Casa 6

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Igreja e casa da Rita e do José

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Rita na cozinha de casa

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Café com queijo na cozinha da casa da Rita

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Gabriel e Rita na cozinha da casa dela

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Vista da cozinha da casa da Rita

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Rita

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José

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Rita

Rita mudou-se pra lá há 37 anos, quando se casou com José.

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Rita e José

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José e Rita

“Aqui é o ninho da raposa amarela”, diz Rita.

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Mogol lá embaixo

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Árvore atingida por raio

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Mogol lá embaixo de novo

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Árvore atingida pelo raio revive

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Areal e mar de morros

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Árvore, ninho, paredão e areal

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Dona Maria do pão de canela / Ibitipoca

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Josué da cachaça Fortes moendo cana / Ibitipoca

Photos by Maria Bitarello
Canon AE-1 / Kodak Portra 400
Mogol / Ibitipoca MG – 2016

O camponês e o marinheiro

Hameau é uma palavra francesa que nomina um aglomerado tão pequeno de moradias que não chega a ser uma vila ou aldeia. Não há igreja e a pedra fundamental desta micro-comunidade foi, tradicionalmente, uma fazenda. Viajando pelas estradas menos movimentadas da França, são muitos os hameaux, nem sempre designados por placas. Cinco, quatro, três e até duas casas podem ser a totalidade de um hameau. Uma singularidade francesa que nos fala de uma demanda particular. De uma cultura erguida sobre alicerces rurais.

Há pouco vi o documentário “Ibitipoca, droba pra lá”, de Felipe Scaldini, um conterrâneo meu. O filme tem como locação um lugarejo próximo a nossa cidade. Ele mostra a região; dá voz a pessoas dali. Ibitipoca é muito familiar aos quem vêm da Zona da Mata mineira. Crescemos indo lá. E nossos pais antes de nós. Antes de haver um parque nacional. Antes de haver giftshop, mapas e guias. Quando não era certo de chegar; dependia das chuvas, do barro. Quando o habitante do arraial era dali, desde sempre. Quando só tinha um orelhão. E muitos cachorros, em bando. Hoje o lugar cresceu, tem muito mais infraestrutura e atraiu muita gente interessada em viver ou passear no mato. Já deve ter até internet. Scaldini foi atrás das pessoas que ainda estão lá, margeando pousadas e centros de informação ao turista. Elas nos falam do que mudou, do que permanece.

Minas e França têm quase o mesmo tamanho. O mar de morros que ondula no interior mineiro replica a sequência de fazendas e áreas cultivadas do interior da França. Cidadezinhas. Uma atrás da outra. Respeitando-se as devidas diferenças históricas e arquitetônicas, está claro. E mineiros e franceses têm suas semelhanças. São dados a longas horas na mesa do almoço, à apreciação de comes e bebes sem economia de calorias e vísceras de animais. É verdade que desconfiam do diferente, mas a abertura que concedem aos de casa não tem reservas. Afinal, um convidado nunca é mandado embora e nunca se vai antes do café. São ambos apegados à maneira correta de fazer as coisas, ao vinho ou à cachaça. A não ter pressa. A deixar as coisas tomarem o tempo que demandarem. A contar caso. Há quem diga ser preguiça, mas eu chamo de gozo pela vida. Afinal, correr pra quê e até onde? A pressa atrapalha o zelo pelas coisas, tira o regozijo do fazer. E mineiros e franceses fazem bem feito e, preferencialmente, com deleite. Gostam da terra, de ficar no mesmo lugar, de saber da sua história.

Dizem que na literatura existem dois narradores: o marinheiro e o camponês. O primeiro viaja o mundo e conta do que viu. É estrangeiro, é imigrante, é náufrago. Sua condição é o exílio. Sua sina, não pertencer. Um observador condenado. O segundo é o que fica. Que vê o forasteiro visitar suas terras. Que vê as chegadas e partidas sempre do mesmo lugar. Ele sabe de si e do seu povo. Se confunde com a própria terra. Porque passou a vida inteira no mesmo lugar, e isso ninguém tira dele. Esses dois narradores, dizem, dão conta de todas as histórias contadas. Eles são os narradores de fundação.

O fotógrafo e cineasta francês, Raymond Depardon, é um camponês. Essencialmente. Cresceu no campo, vem de uma família de camponeses. Fala de casa, fala dos seus. Quem assiste a seus filmes, vê suas fotos, se encontra no mais particular do outro. Porque o íntimo é sempre humano. E o humano é universal. Pensei muito no Depardon esses dias, em seus “Profils Paysans” (Perfis camponeses), sua trilogia sobre a região onde cresceu. Belo. Simples. Tocante. São lentas as longas horas com os personagens, visitados por Depardon ao longo de mais de 10 anos. Ele saiu de lá, quando moço, mas ouço desde criança que o campo não sai de nós. Depardon é impregnado da campagne francesa.Porque conhece seu ritmo, tomou para si a década de que precisou. Se aproximou, penetrou, viu de novo o lugar de onde veio, como um estrangeiro na própria casa. Um mergulho no útero de onde saiu. E isso requer coragem. Mais – muito mais –, penso eu, do que para sair.

Dada à inquietude, tenho o hábito de partir. E, nessas idas e vi(n)das, fui parar na França. As Minas da Europa. Um exílio aconchegante, mas temporário, visto que navegante sofre de um mal. Pertencimento é terra à vista. Quando se toca o solo, é hora de partir de novo. Uma coceira sem fim. Lar parece estar sempre ali, logo ali. Na próxima parada. Mas não passa de miragem do viajante dos mares, de uma prisão dos desassossegados. Assim, deixei, também, a França, mas ela veio comigo. Entrou sob minhas unhas e ficou. Como terra avermelhada. Até Minas Gerais.

Céu no interior da França (Auvergne, 2010), by Maria Bitarello

Saudades do Aeroporto da Serrinha

Adoro turbulências durante o voo. O trepidar lembra um ônibus da Cometa e aumenta minhas chances de adormecer a bordo. Já que voar é entediante e incômodo, aceito todas as formas de torná-lo mais interessante. Ali onde uns sentem medo, eu sinto presença de vida. Que venham as turbulências. E em meu histórico aeronáutico, o voo mais interessante que já tomei foi o Paris-Cotonou, no Benim, com escala em Trípoli, na Líbia, pela Afriqiyah Airways. Não pelas turbulências. Os comissários de bordo fumavam ao lado do banheiro, durante o voo, por exemplo. Os passageiros também fumavam, ao desembarque, antes mesmo de deixarmos aquele tubo que conecta a aeronave ao prédio. No Aeroporto Internacional de Cotonou, o desembarque acontece na pista, e as malas são levadas, lado a lado conosco, até o saguão interno, onde são manualmente colocadas sobre a esteira. Um lugar onde ainda sobra espaço para a acomodação e acordo pessoal.

Para entrar no país, o governo do Benim pede um visto e a cartela de vacinação carimbada no campo “febre amarela”, e eu tinha ambos. Mas, que mancada, esqueci a cartela em Paris e avisei ao oficial de saúde que veio pedi-la, vestido com um jaleco branco, semiaberto, sem camiseta por baixo, e com uma máscara de cirurgião em volta do pescoço. Ele me levou até uma salinha e fechou a porta. “Quando vencia a vacina?”, perguntou, sentando-se à mesa vazia. “Ano que vem”, me expliquei, “tomei faz quase dez anos, mas ainda está valendo.” Ele dispensou meu comentário e seguiu com outra pergunta naquele simpático francês com sotaque africano. “Era só contra febre amarela?”. “Era”, respondi. Ele acenou com a cabeça para a cadeira ao lado, onde me sentei, e tirou uma cartela novinha da gaveta. Preencheu-a com os dados do meu passaporte, carimbou-a com o selo oficial do Ministério da Saúde local e me pediu 10 euros. Eu paguei.

Este prólogo foi só pra contextualizar minha memória desse voo e desse aeroporto, porque pensei neles na semana passada quando cheguei em Juiz de Fora, Minas Gerais, de avião. Foi a primeira vez na vida que aterrissei no Aeroporto da Serrinha, ou Francisco Álvares de Assis, até recentemente o único da minha cidade natal. Foi também meu primeiro voo num avião com asas acima das janelas, desses que vemos em filmes com Humphrey Bogart e Audrey Hepburn. Muito estáveis, aliás.  O Aeroporto da Serrinha é uma simpatia. É tão pequeno que faz pouco separaram a área de embarque da de desembarque. Os funcionários do check-in são os mesmo que buscam nossas malas no avião e alguns amigos meus viraram pilotos treinados ali, no aeroclube.

Quando eu era criança, frequentava o restaurante anexo com minha família por causa do parquinho. Isso antes de eu andar num avião na vida. Uma grade móvel, dessas que vemos na frente de palcos de shows em exposições agropecuárias, separava o parquinho da pista de pouso.  E os voos panorâmicos de teco-teco até hoje são uma opção legal para os amigos que visitam pela primeira vez a região, pois de cima vemos o mar de morros que abraça a cidade e se estende ao horizonte. É bonito.

O voo do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, ao Aeroporto da Serrinha foi lindo. Gostei muito. Foi só na manhã seguinte que fiquei sabendo do acidente que matou oito pessoas ali ao lado. Conheço muitas pessoas que vivem na região. Meu próprio avô deixou terrenos de herança aos quatro filhos, dentre eles minha mãe, logo depois do morro, da colina, onde fica a curta pista de pouso do Serrinha. O local é famoso pela serração baixa e pela má visibilidade, e o pequeno avião nem atingiu a pista, caindo dentro da pousada da família de um amigo meu, local que eu frequentei, semanalmente, por algum tempo. Nossa banda, duplodeck, ensaiava ali, num quartinho anexo à pousada, todos os sábados à tarde. Os aviões que passavam rasantes para pousar eram frequentes, e a vibração que provocavam era, por vezes, grande. A quadra de futebol era ponto de encontro dos “caras” da faculdade terças à noite e o caramanchão, a 200m da curta pista e arrancado do chão pelo bimotor acidentado, foi altar de casamentos de amigos.

O acidente me deixou pensando nessas coincidências e nas minhas memórias associadas ao Aeroporto da Serrinha quando decolei, dois dias depois, de volta para São Paulo. É um daqueles lugares onde o “sistemão” do mundo ainda não chegou direito. Existe um elemento orgânico, onde o caso-a-caso ainda impera e que, pensado dentro de nosso cotidiano corporativizado, faz dele um oásis de bom senso, como o voo da Afriqiyah Airways para o Benim. Onde ainda vemos os indivíduos e as exceções cabem na regra.

Lembrei dos amigos pilotos, voos panorâmicos, ensaios ao som de decolagem, parquinho com minha irmã e, sobretudo, na fotografia que tirei ali no meio da pista, aos 7 anos quase completos, ao lado do então candidato à presidência da república, Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 1989. Essa fotografia ainda decora a casa da minha família e a dos pais de uma amiga de infância: nela, nós duas, penduradas no pescoço do ex-presidente. Ela está ao lado de outra, também tirada ali, agora em setembro de 1998, quando nós duas compactuamos com os seguranças do aeroporto e líderes do PT, que tentavam evitar que a multidão de eleitores invadissem o pequeno saguão. Atravessamos a brecha na porta e na vida e nos precipitamos em meio aos flashs dos fotojornalistas, onde empunhamos a foto de 1989, a marca própria da passagem do tempo, e ladeamos o candidato Lula, à espera dos cliques. Demorou mas conseguimos cópias da foto que saiu, enorme, no Estado de Minas.

Quatorze anos depois deste dia, Lula já teve dois mandatos e não é mais presidente; os integrantes da banda que tocava todos os sábados se espalharam por aí e agora se reúnem de vez em quando para brincar num estúdio mais equipado e no mesmo local; o parquinho, acho que não existe mais, embora as grades tenham melhorado; e a foto emoldurada daquela amizade de infância e adolescência fala de uma saudade que não passa.

Têm dias que são assim. De sossego na turbulência.

(Acervo pessoal)