Lançamento em RJ, SP e JF do livro “Só sei que foi assim”

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Matrimonio Chileno

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All photos taken of my family in Santiago, Chile, in March 2014, using double-exposure of a Kodak 400 TMY film-roll with an all-plastic italian camera called Ferrania and bought at a Flea Market in Clermont-Ferrand, France, in 2010, for 10 euros.

O cheiro das baleias

No final do feriado, voltando para São Paulo de ônibus, vi muitas queimadas na beira da estrada. Uma atrás da outra. Algumas erráticas, como é da natureza do fogo que se alastra; outras ordenadas, desenhando linhas que entregam a intenção por trás daquele ato de devastação. Por vezes sentimos o calor das labaredas; ouvimos seus estalos. O fogo dá medo e fascina. Não dá pra saber quando ele já ultrapassou o ponto de controle e quando ainda dá pra evitar uma catástrofe.

Olhando pela janela do ônibus na madrugada, fui levada, sem meu consentimento, à Califórnia, onde as temporadas de queimadas costumam durar uma boa parte do verão. O fogo se alastra por hectares e pelas semanas.  Morei em Los Angeles, mas de lá não via o fogo, somente seu rastro. Fuligem. A poeira cinza sobre os carros. O ar turvo, irrespirável. O calor não arrefece à noite, e as madrugadas de 35˚C acontecem mais de uma vez. Não há umidade, a garganta seca, os olhos irritam. O mundo parece arder sob o céu, e o pôr-do-sol neste inferno é de uma beleza marciana: de trás das nuvens espessas, o Sol, vermelho, incandescente. Seu contorno circular através do filtro de fumaça é nítido como se fosse feito a pinceladas.

No verão de 2008, viajei para São Francisco de carro pela PCH – Pacific Coast Highway, ou simplesmente Highway 1. A paisagem muda gradualmente do deserto angelino para a umidade enevoada da baía. Entre eles, vinícolas, litoral e as colinas amareladas de San Luis Obispo, entremeadas por bosques de um verde mais intenso. Da estrada, vê-se o castelo de William Randolph Hearst, o magnata das comunicações americanas, inspiração para “Cidadão Kane” de Orson Welles. O caminho pela costa contorna a barriga litorânea que se insinua sobre o Pacífico. Ali no meio, estreita e tortuosa, a estrada se espreme em uma beleza só sua, tão distinta da que vemos nos trópicos.

Com a proximidade de Big Sur, surgem rochas monumentais nas praias. No som do carro, Beatles. Do outro lado da pista, a borda de Los Padres National Forest. As queimadas corriam paralelas, pelo interior do parque, longe do meu olhar, mas pintando o céu de laranja, num entardecer que eu insisto em não esquecer. O calor era abrasivo. E o caminho foi interrompido. Sem forma de prosseguir ou contornar, só pude voltar atrás. Mais de 200 km até a última parada avistada. Cheguei junto com os últimos raios de Sol daquele dia de junho, os mesmos que confundem motoristas no lusco-fusco.

O frentista se orgulhou ao encher o tanque do meu carro com “a gasolina mais cara da América”, foram suas palavras. Atrás dele, um restaurante e uma pousada, simpáticos embora ordinários, davam o tom de raridade daquela parada: preços exorbitantes. Não havia muita gente passando por ali. Não era rota pra lugar algum. E passei uma noite no quarto, lá no alto, empoleirado sobre o restaurante. Abaixo deles, a estrada, e logo o Pacífico, ao infinito. Cada um a poucos metros do seguinte. Whale Watchers Café, dizia a placa. Nas épocas certas do ano, os turistas mais informados que eu sabiam que aquele era um ponto privilegiado para observação da migração sazonal de baleias.

Senti-me afortunada. Queria chegar a Big Sur, conhecer mais um lugar por onde passou Jack Kerouac. Mas no meio do caminho havia fogo e baleias. Nem liguei de não ser temporada de migração, só de queimadas mesmo. Já estava ali, senti que ali deveria estar. Da minha janela, olhei o mar durante a noite, e na manhã seguinte contornei a floresta, por Paso Robles, antes de voltar a rumar norte. Nunca mais ouvi falar desse lugar. Nunca mais paguei US$ 6 pelo galão de gasolina.

Cada um tem a madeleine que merece. Para Proust, foi o bolinho que o transportou à infância. Para Hearst, o cidadão Kane, foi o trenó, rosebud. “The more you remember something, the less accurate the memory becomes (…) If you prevent the memory from changing, it ceases to exist” (Quanto mais você recorda, menos precisa se torna a memória (…) Se você impedir a mudança de uma lembrança, ela deixa de existir), li esses dias no livro de Jonah Lehrer, “Proust foi um neurocientista”.

Aquela foi a mais bela viagem de carro que já fiz. Ou então é minha memória, danada, que me prega peças. Que não me corta quando embelezo certos pontos e omito outros. Que me deixa mentir, criar, inventar. Lembranças são sorrateiras, nos tomam de assalto. Às vezes, até com cheiro de madeira queimada. Outras com “Two of us”, dos Beatles. “You and I have memories, longer than the road that stretches out ahead” (Eu e você temos memórias mais longas que a estrada que se estende à nossa frente). Numa travessia à beira mar em que deu tempo de retroceder e contornar as chamas, estranhamente, eu andava para frente. E não andava só.

Vista do Whale Watchers Café na Pacific Coast Highway – Califórnia, Estados Unidos, by Fábio Nascimento

Coragem e colhões

No dia em que contei a meu grande amigo e diretor de cinema, José Sette, que eu tinha conseguido meu primeiro emprego como jornalista ele reagiu com pesar. “Perdi você para essa merda do jornalismo”, foram suas únicas palavras. O Zé foi o primeiro cineasta com quem trabalhei. Comecei no segundo período da faculdade como assistente de produção de um curta-metragem seu e conclui a parceria com a direção de produção, assistência de direção, braço direito e esquerdo e assessoria espiritual de seu longa-metragem, Labirinto de Pedra, no final da faculdade. A gente costumava sentar ao fim do dia pra conversar sobre as próximas gravações ou discutir uma locação.

As horas voavam, eram mágicas. A atenção que ele me cedia, inestimável. Entre muitos cigarros, ele prolongava as sílabas das palavras mais langorosas ao contar do exílio, fazia perguntas desconcertantes para introduzir um manifesto do cinema marginal, maldizia com superlativos o cinema atual em nome do Glauber, se emocionava com o expressionismo alemão e me cortejava com aulas teóricas sobre películas, formatos e sensibilidades de filme. Foram horas passadas em seu ateliê, entre seus filmes, câmeras, livros e quadros. Horas que agora repousam, com louvor, no alto da estante de memórias que mais estimo.

Hoje é Dia do Artista e pensei no Zé, que não vejo há anos. A lembrança me levou, com carinho, a outros artistas que povoam minha vida e até meu cotidiano. Minha fantasia de infância era viver um mundo de arte e criação, de ideias e experiências. Não sabia, então, a extensão dessa vontade, que me levaria a casar com um deles. Naquela época, eu desconfiava, mas não sabia, que a gente não escolhe se vai ser artista – é ela, a vida bandida, que nos cutuca, por trás, e no escuro. Falta de vocação ou de coragem, fico desde sempre a margeá-la, sem pular na piscina. Me contagio, me impregno e até me surpreendo quando me encontro na criação do outro. Numa música, numa foto, num quadro, num capítulo ou personagem.

Meu grande amigo escritor pulou. Ele tem o livro pronto na cabeça antes de escrever. Como? Não sei. Fica tudo ali, frases, diálogos, passagens, episódios; todos eles alinhados, com numerologia e etimologia consideradas, esperando a caminhada ao redor da praça pra decidir em que capítulo – ainda não escrito – morre o protagonista. Não consegue parar. Não pode evitar. Cria, recria e fantasia tudo. Sonha em não fazê-lo. Em viver sem criar uma história. Ainda não conseguiu e, enquanto isso, esse sonho também vira uma história.

Outro que não teve escolha foi um amigo e músico francês. Esse me assusta. Vê-lo compor é um verbo no presente: tudo ocorre enquanto o almoço fica pronto, o telefone toca e ele brinca com o violão entre duas tragadas no cigarro. Simplesmente sai. Derrama. Diferente de um amigo músico brasileiro. Com ele não é natural. Não sai fácil. Sai estranho. Sai espremido. E numa tarde de conversa jogada fora ao sofá ele me diz que para sair dez músicas que prestam, só mesmo jogando fora outras 60. “Quando você começa a compor, a primeira coisa que vem é o clichê. Aí você deixa vir o que tem que vir. Gasta esse clichê, até chegar em outra coisa, em algo melhor.” Stanley Kubrick também achava isso. Que o melhor vem do cansaço. Quando paramos de tentar demais. Quantos takes são necessários para isso? Trinta, quarenta? Não importa. Tudo o que vem antes é preparação para o take perfeito. Rascunhos. Faixas descartadas.

Acho tudo isso fascinante, como é para cada um deles. E penso no Truffaut, que tem uma frase muito boa. Ele nos diz para que “nunca esqueçamos que as ideias são menos interessantes que os seres humanos que as criam, modificam”. Sorte ou sina, tenho muitos artistas ao meu redor. E a convivência nem sempre é suave. Tampouco acho que seja do gosto de muita gente. Quando só temos contato com a obra, e não com o autor, não precisamos conviver nem amar a pessoa privada pra admirar a pessoa pública.

Mas lidar com os artistas, diretamente, é uma experiência distinta. Às vezes a vaidade é quase infantil. Também acontece de serem monotemáticos, obsessivos, até chatos. Muita gente se ofende e entendia mais do que se encanta. A ironia e o sarcasmo podem ser ácidos demais. O julgamento, exaustivo. A necessidade do aplauso, enfadonha. Entendo tudo isso, mas ainda acho que vale a pena. Criar é um tormento que deixa marcas, e a admiração que elas inspiram anda lado-a-lado com a repulsa. É preciso colhões, paciência e, sim, autoconfiança para assistir ao parto prolongado da obra até o fim e não ser arrastado para a lama quando o outro se atola. Mas para quem aguentar, eu prometo que vale a viagem. Vale por aqueles momentos – efêmeros, é claro – em que vemos o mundo com eles.

Tive uma queda pelo Nietzsche na época da faculdade. “Só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente”, li e fiquei de quatro, no ato. Queria ter conhecido o cara. Conversado com ele. Passado horas em sua companhia, como fiz com o Zé e ainda faço com tantos outros. Meu professor e mentor percebeu o fascínio e lançou o desafio: “Queria ver quem aqui conseguia ser amigo de um cara desses lá na época em que ele estava escrevendo essas loucuras aqui. Vocês sabem onde ele chegou pra escrever isso?”. Eu não sabia, mas estava disposta a descobrir. “Eu. Eu seria amiga dele”, dizia a mim mesma, desafiando com os olhos.

Acabei descobrindo muitos lugares sombrios da criação, e tantas vezes passei por eles de mãos dadas. Não tive escolha: quem me pedia a mão era o artista, o amigo, o amante. Não neguei. Pulei. Dei a volta pelo caminho mais longo, mas acabei, eu também, dentro da piscina. Acho que o Zé ficaria satisfeito com a jornalista que me tornei. Que não teve coragem, mas teve colhões.