Outro dia ouvi de um historiador que o contrário da vida não é a morte, que traz o mistério e nossa maior transformação rumo ao desconhecido. O contrário da vida é a perda do Encantamento. Partindo dessa imagem, ideia, princípio, lógica, Lia já pode pensar em viver para sempre a partir de seus escritos. Tudo ali é Encantamento, a começar pelos nomes das personagens com que ela vai cruzando pelo Caminho, na verdade a grande personagem de seus diários. O Caminho da transformação, o fim de um ciclo pra começar uma nova vida, um Caminho de iniciação. Entrar na vida adulta? Se recuperar de um coração partido, de ilusões perdidas, e descobrir o porquê de estar aqui, ou quem sabe um grande objetivo pra vida? Ou apenas se abrir para o Encantamento dessa mesma vida, que esse sim, a acompanhará por todo o Caminho pela frente.
Começo este texto estabelecendo que: escrever sobre os manuscritos de memórias de outrem é tarefa complicada. Não há, nesse caso, critérios a serem considerados e julgados como enredo, desenvolvimento de personagens e desfecho. Não há estória; apenas história, e essa não se avalia, se aprecia. Por isso, é importante que saibam todos que li e ouvi “Abro-te Meus Caminhos” com os olhos de uma pessoa que já correu distância imensa, mas para quem o sertão parece mundo de ficção.
De início, acho importante destacar que Lia tem uma escrita única, que, arrisco-me, reflete muito sua própria oralidade, com escolhas muito peculiares, mas muito bem colocadas, de construção e vocábulos. Sua característica que mais me marca e que mais aprecio é quando, na escrita – fora do campo da fala –, Lia faz usos muitos interessantes da caixa alta, quebrando normas explícitas com liberdade quase saramaguiana. Esse estilo em nada afeta o ritmo do texto, mas traz novos significados e não pode ser percebido pela narração uma vez que é inerente ao papel.
Sobre suas memórias, já havia ouvido parte dos relatos e me abstive atônito, sem encontrar comentários a fazer diante de história que achei tão grandiosa. Ler seus escritos é tarefa muito prazerosa: os relatos são lindos e a escrita é gostosa. Para além, me contradigo em partes para dizer que, apesar do caráter bibliográfico e epistolar desses escritos, há, sim, desenvolvimento de personagem: Jaguar. Lia desenvolve ao longo de seus escritos a construção de seu relacionamento com a senhora sertaneja e o amor que se desabrocha; saímos de “minha mineirinha”, passamos por “filha” e desaguamos em emocionada despedida.
Julgo relevante, no entanto, tecer comentários sobre aquilo de que senti falta. Apesar de termos relatos das dificuldades do sertão como falta de água encanada e abuso do mercado financeiro, não há qualquer comentário sobre o que se passa. Aqui, entramos em âmbito muito pessoal, mas sou dos jovens que acreditam na necessidade de recortes específicos. Lia talvez não tenha nesse ponto o seu interesse, deixando explícito em certo momento de seu escrito que não queria se “comprometer com assuntos tão complexos”. Não é, de forma alguma, demérito, mas quando se é fã da literatura Jorge Amado e suas denúncias, sente-se falta desse viés.
Lia nos entrega um texto com muita sensibilidade, Verdade e Coração (com letra maiúscula, perceba) e não se intimida que a acompanhemos em suas mais diversas jornadas. A mineirinha relata sua trajetória com muita deferência e muito carinho, e não hesita em desnudar momentos de dúvidas e de necessidade de se reenergizar para voltar àquela terra que não a pariu. Ao fim e ao cabo, é um texto muito sobre descobertas, primeiras-vezes e espiritualidade aflorada. Caminho que vale a pena ser lido, compartilhado e trilhado. “Volta pra Terra, Fia”.