Dia de Finados

“Você morreu pra mim. Nunca mais quero te ver.” Queima-se cartas, rasga-se fotos, apaga-se mensagens de celular e email, muda-se de amigos. Enterramos o outro em vida. Encerramos um amor ou uma amizade. A paixão adolescente é dramática, e sofrida é a primeira perda. “Como será possível a vida continuar sem você”, esbravejamos, mão contra o peito, “sobretudo porque você está vivo? Sua vida continua, só não é mais comigo.” A dor é muito grande; a incompreensão e frustração, maiores. E delas tiramos aprendizado.

É Finados. Dia dos Mortos. Aqueles que a vida tira de nós. É dia dos vivos lembrarem-se deles. Quando eu era criança, achava a cerimônia de morte demasiado mórbida. Velar o corpo era uma tara que eu não pretendia partilhar. Isso muito antes de entender o luto. E, sobretudo, que trata-se de um ritual para os vivos. Para seguirmos adiante sem arrastar um caixão desajeitado vida afora. Sem assombração nem nada. Porque ao contrário do que nos dizem na infância, a morte não vem apenas no fim. Acontece o tempo todo. Ao nosso redor, dentro de casa. Em nós mesmos. A vida toda.

Proponho, portanto, que hoje lembremos também daqueles que extirpamos da nossa vida sem óbito. Pela separação. Para que nos lembremos mesmo depois que não recordarmos mais os detalhes do rosto. Pois “eliminar os mortos da memória não é possível. O passado está cheio de mortos, mas aqui estou eu a continuar a lhes dar vida. Quem é que se pode separar disso?”. A frase é de José Saramago, que também diz que o passado não passa, acumula. Empilhado sobre o presente. Nesta pilha, enfileiram-se os sepultamentos póstumos e também as mortes em vida.

Gostaria, ainda, de evocar um terceiro tipo de defunto. Da categoria Lance Armstrong. Que não foi tirado de nós e que nós não afastamos voluntariamente. É a História que apaga seu traço; eis sua condenação. O morto-vivo punido com o esquecimento. O ostracismo. Todos os grandes – nos esportes, nas artes, nas ciências – buscam a imortalidade. Sua perpetuação. Tirá-la é uma forma de punição customizada das mais perversas. Falei sobre isso em outro artigo nessa coluna, lembrando “1984”, de George Orwell.

E a primeira coisa em que pensei quando soube do afastamento de Armstrong foi justamente Orwell. “Não estamos mais em guerra com a Eurásia; na verdade, nunca estivemos”. Lobotomia ideológica em “1984”. A cada reviravolta na política, apagam-se os arquivos de jornal. Deleta-se do cotidiano todo e qualquer vestígio. Uma verdade que nunca houvera, da qual se duvida e que aos poucos vira uma mentira.

O ciclista americano vai “sair” da História como o farsante que teve seu mandato esportivo caçado. Não será esquecido por completo, mas, em 100 anos, será um rosto desbotado. Ele, antigo detentor dos impressionantes 7 títulos na Tour de France, em sequência. Com o passar das gerações, seu nome – apagado do panteão do esporte – deixará de ser dito. Seu doping não será usado como exemplo. Uma decisão judicial que hoje custa mais a nós, seu público, sobre quem pesa a incumbência do esquecimento. Forçados por lei a enterrar sua glória.

Sempre dizem que “a vida continua”, mas a vida sempre acaba. É a morte que continua, para sempre. E enquanto estivermos por aqui, levamos nossos mortos conosco, pelas mãos. Há os que, diante disso, prefiram tirar as perdas de vista. Maquiar a ausência onipresente. E há os que prefiram ver para exorcizar. Fitar o corpo. No meio dos dois, com tempo e paciência, existe outro lugar. Onde lembramos para seguir adiante. Onde há dor, não sofrimento. As saudades não passam mesmo. Mas mudam.

Nesse Finados, portanto, penso nos vivos. Pois não há aceitação no esquecimento. Penso em quem recorda. Em quem se separou em vida. Em Lance Armstrong. E se uma criança me perguntar, amanhã, quem foi o ciclista, não vou repreendê-la. Não vou sussurrar baixinho. Muito menos prometer contar a verdade quando ela tiver idade. O americano é um memorial vivo, erguido em praça pública. Não nos deixa esquecer. Nos ajuda a prosseguir de mãos dadas com nossa história, os olhos abertos. Que façamos uso dele.

Jardin du Coq, Clermont-Ferrand, França (2010), by Maria Bitarello

A lã da Caxemira

Eu devia ter dito “não” logo na porta. Estrangeiro é educado em demasia. Temos medo de cometer gafes e por isso abanamos a cabeça pra qualquer um. Naturalmente, entramos em algumas roubadas. Eu bem que cruzei com duas americanas saindo da loja de tecidos que tentaram me alertar. Seus olhares sugeriam risadas e me apontavam o tamanho do buraco negro que me envolveria. Me achei mais esperta, pensei: “Não sou igual a elas, não vou cair na desses caras, só quero ver essas echarpes aqui”.

Quanta soberba. Sai de lá 2 horas depois com duas sacolas, um rombo no cartão de crédito, um convite para visitar a Caxemira, uma surra em barganha comercial e a barriga cheia de chá de canela com cardamomo. Nem vi de onde veio a coisa toda, perdi a noção de tempo e espaço. Culpa, ou mérito, de Majeed, um senhor de uns 60 e tantos anos, suponho. Túnica branca. Chéchia na cabeça, pés descalços, pernas cruzadas no chão como um faquir magrelo (redundante, mas necessário), barba branca pendurada abaixo do pescoço. Me recebeu com entusiasmo, doçura firme e sagacidade profissional. Seu olhar sempre no meu.

Pedi pra ver uma pashmina ou caxemira. Echarpes feitas de lã de cabras nativas da região dos Himalaias (Caxemira, Paquistão, Índia). “Existem alguns tipos”, me disse suave, segurando minha mão entre as suas. “As que são de lã normal, vendidas como se fossem caxemira. As que são um combinado de algodão e lã. As de caxemira, feitas na máquina. E as de caxemira, feitas a mão”. A fixação de seu olhar me tiranizava. A última opção era a melhor, evidentemente. A diferença de preço reforçava. Olhei pra todas elas, penduradas no meu braço. E esse senhor magrinho e de pés limpos me levou pela pequena loja de piso de carpete, mãos dadas.

Sentamo-nos ao chão com as caxemiras com bordados feitos a mão, cada uma mais maravilhosa e cara que a outra. Pilhas, montes delas. As melhores dentro de malas. Eu as olhava; ele me encarava. Atentamente. Se eu tocava ou se só olhava. Se sorria. Se não mudava de expressão. Se falava com ele da beleza da peça ou se a sentia em silêncio. Se dispensava-a ou se passava a superfície da echarpe contra a pele. A cada uma dessas pequenas pausas estéticas e sensórias, ele dava comandos em hindi ou dialeto de caxemira, sinceramente não sei, aos dois assistentes. Dois rapazes de 20 e poucos anos, vindos do norte da Índia. Camisas xadrez idênticas, como as calças jeans, e os cortes de cabelo mod. Cabelos bem lisos e cheios.

Eles obedeciam os comandos, ditos com autoridade, sem hesitar. Traziam uma nova pilha de echarpes. Dobravam tapetes. Desciam chá de canela com cardamomo, o lubrificante social de Majeed. Quando a negociação empacava, ele mandava descer mais chá. Primeiro sem açúcar. Depois com. Me olhava beber o chá. Me cortejando ou me drogando, e eu aceitando a isca, consciente do truque, mas encantada com o mágico. Com sua destreza com palavras e gestos, estrategicamente dispensados. Majeed é um mestre das paixões humanas.

Depois de uma busca conduzida e assistida por ele, de muito perto, escolhi 5. Não seria possível. Ele não aceitava que eu não levasse a caxemira dourada, a que pertencia a mim neste mundo. Eu concordei em hipnose; também não podia aceitar. Bota na conta. Quem dá mais? Eu dou menos. Toma lá, dá cá, bebe chá, um aperto de mão final e um forte tapa nas costas. Chegamos a um acordo.

Aliviada, queria sair dali o mais rápido possível. Embarquei na aventura cultural por vontade própria e mais por interesse antropológico que comercial, mas uma hora basta. Ele fechou as contas, embalou as echarpes e eu fiquei de bobeira olhando a loja. Eram muitos os tapetes. E as honrarias, os quadros que contam de prêmios de excelência, fotos de celebridades. Nelas, o mesmo aperto de mão. O pacto selado. Mais uma vítima indefesa do Mago Majeed.

E então vacilei. Em um momento de distração. Coisa de amadora; ele nunca parou de me olhar. Passei perto de um tapete e acariciei sua superfície. Majeed começou a desenrolar tapetes no chão, um atrás do outro, como línguas de lã. “Eu tenho que te ensinar como fazer o teste de qualidade de um tapete genuíno da Caxemira”, disse com um sorriso esperto. “Sem compromisso, não há pressão, você não tem que comprar nada”, sussurrou em confidência. Seu inglês é o mais eloquente que encontrei na Índia. “A qualidade é inquestionável, é um tapete para toda a vida. Minha família os faz há gerações. Sou da Caxemira. Quando você vai embora? Da próxima vez, vou te levar comigo lá, eu te levo no meu carro. É o paraíso na terra, a região mais linda de toda a Índia. Eu moro em Delhi, temos loja aqui no Hyatt, também no Sheraton, e um grande estoque. Vamos visita-lo amanhã? Que horas você pode?”

Fiquei zonza com tantas perguntas. Olhei pra baixo e ri baixinho. De improviso, ele seguiu meu olhar e passou a me mostrar a contagem de fios abaixo dos meus pés também descalços. Um repentista social. Nada escaparia a sua estratégia de venda. Com pânico e admiração, desenvolvi por ele, até o final da tarde, respeito sincero.

Com as echarpes já ensacadas, passamos então aos tapetes. São três as etapas de avaliação de qualidade. Primeiro. Na parte de trás, lá no meio, arranque um fiapo com uma agulha. A seda de verdade e costurada a mão solta fiapos curtos. A falsa, ou misturada, e feita a máquina, solta fiapos inteiriços. Na sequência, queime o fiapo. Se tiver cheiro de cabelo ou pena de galinha queimada, é seda. Se tiver cheiro de papel, é sintético. Não é piromancia, é uma espécie de selo ISO 9004.

Segundo. Teste para saber se a franjinha nas pontas do tapete são de seda inteiriça – se elas atravessam o tapete até as pontas – ou se foram simplesmente costuradas ali na beirola para parecerem verdadeiras, minimizando o valor do metro quadrado e aparentando sofisticação. No verso, mais uma vez, perto das bordas, levante um fio com uma agulha e balance de um lado para o outro, afrouxando o fio teso. Se ele for se soltando dos dois lados sem arrebentar, é porque atravessa o tapete. Senão, só está na ponta, e vai arrebentar assim que você perfurá-lo. Mais uma vez, batata. O cara conhece seu ofício. E por fim, pegue uma pequena lupa dessas de observar negativos de filme. A janelinha deve ter 2,5cm. Com ela, conte os fios. E verifique o que está indicado no rótulo atrás do produto. Se são 18, 24, 30 ou 50 fios. E bata o martelo.

Majeed é o melhor vendedor com o qual já cruzei na vida. Um Don Juan da tapeçaria. E eu sou uma péssima negociadora. Está claro que ele me convenceu a levar o tapete do qual eu não precisava, mais as 6 caxemiras. Fiquei buscando razões pra justificar aquela compra maluca, e achei umas duas, pra legitimizar o surto. Majeed parecia satisfeito, mas nem de longe eufórico. É seu trabalho, o que ele faz todos os dias. Cada cliente é um novo coração a ser lido e desvendado. Com botõezinhos diferentes a serem apertados. Tomamos outro chá pra pensar nos descontos. Consegui tirar um bocado do total, mas ainda assim paguei mais do que valia, suponho. Será que quando sabemos da trapaça e consentimos com ela somos menos bobos ou isso é desculpa de peidorreiro?

O pagamento virou outro problema. Não passava o valor todo no meu cartão, não em dólares. Pensei em fugir, abandonar aquilo tudo. Sem meu consentimento, ele passou tudo que pôde no cartão, e o que sobrou foi o valor do tapete. Senti alívio; talvez conseguisse escapar só com as caxemiras. Já estava meio arrependida daquele circo. Propus voltar depois pra pegar o tapete. Claro que não colou. Da soberba à ingenuidade: a cliente perfeita. Majeed calçou os sapatos, pegou minha mão e me levou pra fora do hotel, pela rua, por uma escada, entre carros, um pátio, uma galeria, um restaurante, até um banco. “Aqui você pode sacar”.

O caixa estava fora de serviço. Outra chance de fugir correndo. Mas e as caxemiras que tinham ficado na loja e pelas quais eu já tinha pago? Ele obviamente não se dissuadiu com o pequeno percalço, que na Índia chama-se cotidiano. Me levou dentro do banco, conversou com a atendente, que nos mandou esperar um pouco. Esperamos 10, 15 minutos. E nada aconteceu. Saímos em busca de outro caixa eletrônico. Ele ia pedindo informação com a mesma autoridade e desenvoltura, lá fora, que demonstrava dentro de sua loja. Saquei o dinheiro e voltamos pelo mesmo trajeto tortuoso e fabuloso até a entrada lateral do hotel. Paguei o resto.

Enfiei os pés descalços nas havaianas e peguei minhas sacolas. Ele me entregou um folder da Caxemira com seu telefone anotado. Olhar sem vacilo. Me mostrou, num álbum de fotos, Bill Clinton comprando com ele, apertando sua mão. “Você vai comigo no meu estoque”, afirmou, mais uma vez com minha mão entre as suas.“É lindo. Tomaremos chá. Sem pressão, você não precisa comprar nada. Chegando lá pode se convencer do contrário, mas…”. Interrompi-o. Seus assistentes riram alto. Eles vinham rindo o tempo todo pelos cantos. De mim e da situação toda. Majeed também riu. Todos rimos. “Eu não compro mais nada!”, conclui. Mas prometi voltar no dia seguinte para o chá.

Mercado

Mercado Municipal de São Paulo, dupla exposição, 2011, by Maria Bitarello

 

Petit Santôs

Semana passada, voei pela primeira vez na Emirates Airlines, o George V da aviação. A nécessaire de bordo traz amostras da Bulgari. Pode-se usar o iPhone durante o voo. O cockpit-assento-cama tem colchonete para amaciar o sono e a vida, aberto em 180 graus completos. As refeições são servidas em louça. A bebida é liberada. Os comissários adoráveis. O teto é mais alto, e o piloto, exímio. Só não pode fumar. Nunca fui tão bem tratada no ar, quiçá na terra. Foram 14 horas de voo até Dubai; 12 de sono. Eu já vinha pensando em escrever sobre o aviador mineiro, diante da data comemorativa de 106 anos do voo do 14-bis. E as coincidências me levaram à Índia, de Emirates, justo a tempo.

No dia 23 de outubro de 1906, Santos Dumont realizou o primeiro voo público da história em um objeto mais pesado que o ar com propulsão própria. Ou seja, decolou e pousou por meios próprios; não foi um salto de asa-delta/planador, foi realmente uma decolagem. Ele fez isso no Campo de Bagatelle, em Paris. Foi um voo curtinho. Ele percorreu 60m em 7 segundos, a 2 metros de altura do solo, numa geringonça de 290kg com motorzinho de 5 cavalos.  Levou 3 mil francos, na época. Fez história.

Santos Dumont era mineiro. De uma cidade ao lado da minha. Hoje o lugar leva seu nome e a casa onde ele nasceu – e que mais tarde veio a comprar – é o Museu do Cabangu. Nasceu ali, mas cresceu no interior de São Paulo e passou grande parte da vida adulta em Paris. Quando abandonou a aviação, desgostoso, voltou para o Brasil e comprou a propriedade mineira, onde começou a criar gado holandês. E no fim, morreu em Guarujá, três dias após seu aniversário de 59 anos. Não viu a guerra. Nem a luftwaffe, os mísseis, a Endeavor e muito menos a Emirates. Cabeça aberta e curioso quando jovem, apaixonado pelas descobertas, Santos Dumont  com o tempo virou um recluso, amargurou-se. Suspeito que não gostaria do spa aéreo em que se transformou a aviação de luxo. Seu interesse pelas aeronaves talvez acabasse ali com os B-52’s. Vai saber.

Em 2006, colaborei com a pesquisa e redação do livro Santos Dumont: retorno às origens – A vida do pai da aviação em sua terra natal, de Isabel Pequeno e Sergio Bara, grandes amigos e colegas de trabalho. Um apanhado de fotografias, cartas, objetos pessoais e relatos até então inéditos, cujos cuidados estão nas mãos da Fundação Casa de Cabangu, detentora de um rico acervo.

Entregue as últimas páginas do livro e ainda naquele mesmo ano do centenário do infame voo do 14-bis, fui a Paris. Era minha primeira vez. E fui pautada para escrever uma matéria sobre a data do 23 de outubro. Virou um roteiro de viagem à Paris do petit Santôs. Texto e imagens contrapunham a cidade de então com a de hoje, de maneira biográfica. O Campo de Bagatelle; o Musée de l’Air et de l’Espace no Aéroport du Bourget – onde está a réplica do simpático aviãozinho e de outros modelos, como a Demoiselle –; a Villa Santos Dumont; o edifício onde ele viveu no 17ème arrondissement; o hotel atrás da Torre Eiffel, onde caiu com seu dirigível; a Maison Cartier, na Champs-Élysées, onde ainda residem amostras de uma edição limitada do relógio de pulso desenhado sob encomenda pela grife para o aviador. O primeiro relógio de pulso da história. São muitas as histórias.

A matéria saiu, mas Paris ficou. Ainda voltei muitas vezes, até me mudar pra lá. Hoje a cidade é outra no meu imaginário; o carinho é maior. No entanto, fica sempre uma lembrança bonita daquela primeira vez, daquele primeiro amor, da descoberta de suas esquinas enviesadas com a aviação mineira. Atenta às coincidências e ao acaso, foi numa dessas que fui parar na casa de mais um mineiro em Paris, que me acolheu e me fotografou. Sua família era de Santos Dumont. Não pude ignorar. Chamei-o pra pauta e ele aceitou.

Entrou pra matéria e pra minha vida. Porque o sentido das coisas somos nós que atribuímos. Sinais só existem quando percebidos. Para ganharem vida, devem ligar-se às pessoas e a suas histórias. Só assim cabe, numa mesma crônica, a Índia, a Emirates e a Paris de Santos Dumont.

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Perdidos em Bois de Boulogne, Paris (2006), by Maria Bitarello

 

Dia das Crianças

Dizem que todo mundo para de amadurecer a uma certa altura. Os anos passam, as velinhas começam a acumular, mas continuamos nos sentindo com a mesma idade. Seria o pico de nossa evolução emocional. A maioria dos adultos a quem já perguntei sobre isso responde que esse momento foi ali por volta do final da adolescência, início da década de 20. Essa semana falei com minha tia que mora em Los Angeles e me lembrei de sua resposta, dada uns anos atrás. “Seis”, disse com calma, sabendo a resposta desde sempre, mas sem nunca antes ter tido a oportunidade de dizê-la a alguém. “Seis anos”.

Crianças desta idade não são mais bebês. Falam muito, leem pouco, têm plena coordenação motora e já entendem alguns sentimentos abstratos. Respeitam leis ao seu redor e percebem que não podem mais fazer o que querem. Evolui seu senso de autopreservação, da queda que machuca, do perigo. Também já entendem uma parte grande do que se passa entre os adultos. Captam nuances. Escutam segredos. Sentem medo, angústia. Reconhecem a existência do futuro e do passado, ainda que o presente seja o rei do dia. De todos os dias.

Minha vizinha tem duas filhas pequenas. A menor é a Dunya. Tem quase um ano e faz pouco estava descobrindo a extensão do seu próprio corpo, olhando os dedos de suas mãos, maravilhada, mexendo-os no ar, em propriocepção. Agora está quase andando. A mais velha fez 5 anos em julho e se chama Muxima. Já não manipula a irmã como uma boneca. Sabe que ela é pequena, que deve ser tratada com cuidado e vem, aos poucos, percebendo que não é mais a fofinha bajulada de outrora, que o olhar dos adultos para ela mudou. Sobretudo quando vê os mimos concedidos à irmã. Às vezes retrocede nos gestos, faz-se bebê, infantiliza-se porque quer carinho e proteção.

Uma grande amiga veio me visitar com seu pequenino de quase 1 ano e meio, Nuno. O rapazinho anda sozinho, sabe pedir e ir atrás das coisas. Logo, o mundo de possibilidades de realizações de seus desejos parece infinito. Lá em casa, tentava matar o tédio arremessando potinhos de plástico dentro da privada e esvaziando o saco de arroz no chão da cozinha. Mas assim que minha vizinha chegou com as duas pequenas, largou os potinhos e abriu um sorriso do tamanho de sua satisfação. Sabia o que queria. Aproximou-se com entusiasmo não contido, laçou seus braços ao redor da garotinha de cabelos cacheados e lascou-lhe um beijo na boca. Segurou a cabeça da Muxima contra a sua pra que não se esquivasse de seu afeto desajeitado. Ela, lembrando do que a mãe havia lhe ensinado sobre os cuidados com os menores, saiu-se bem, com elegância. Virou o rosto de lado. Segurou-o a meia distância. Sem força, sem raiva. Ele insistiu. Inclinou o corpo pra frente. Seus olhos brilhavam, os dentes, esparsos, estavam todos à mostra, tamanho era o sorriso. Puxou os cabelos da amada, não como tática de guerra. Era vontade.

Não deu certo. Partiu então pra irmã. Dunya engatinhava sobre o tapete e ele queria subir em suas costas, ainda frágeis, de bebê. Impedido pelos adultos, improvisou. Arremessou-se ao chão diante da infante sobre os quatro membros, deitou e abriu o peito e os braços, como um pavão apaixonado. Ria. Gargalhava. Diante das explicações de sua mãe sobre o que podia e o que não podia ser feito com as duas meninas, ele parecia entender apenas uma parte. Estava sendo repreendido, sim, ele entendeu. Olhou para baixo. Fez cara de culpado. Mas tão pronto avistou as meninas de novo, era todo sorriso e amor afoito. Não via mal algum no que fazia.

Saí pra comprar um belisco e, na esquina, um habitué boêmio do Bar do Seu Zé – e figurinha fácil no bairro – foi interrompido em sua conversa de boteco quando uma mulher parou o carro no meio da rua e começou a esbravejar da janela. Gritou obscenidades, grosserias. Desceu, arrancou do corpo do amado a camiseta que ele vestia e foi-se embora. Quando saí com as empanadas na mão, ele estava desnudo da cintura pra cima. Inabalado, aparentemente. Tomava sua cerveja sem pressa. Voltei com a comida e entrei em casa justo a tempo de ouvir a pergunta da Muxima a sua mãe, em um diálogo em andamento: “O quê que é sofrimento?” Nem ouvi a resposta. A pergunta bastou.

Vejo na Muxima um equilíbrio raro que logo vai passar. Está ali, cúspide, entre o laissez-faire da primeira infância inconsequente e a absorção das leis adultas a seu redor. Fluente entre dois mundos, bilíngue. Sempre atenta. Aprende sobre o desejo e o sofrimento, querer e não poder; sobre crescer. Só que seu instinto ainda é mais forte.

“Com seis anos, era o mais sábia que já fui. Sabia o que queria, o que me fazia feliz. Sabia o que não queria, mesmo que o fizesse por obrigação. Respeitava a mim mesma, não me atropelava; não me passavam em branco as coisas. Estava atenta. Sagaz. Comprometida”, foi a continuação da resposta da minha tia, àquela pergunta inicial. “Tento sempre me reconectar àquela menina que fui. Hoje, adulta. Porque ela sabia o que era melhor para nós.”

Para a Muxima, meus votos de um feliz dia das crianças são uma forma de pacto. Comigo e com ela. Que ela não quebre as promessas feitas à menina de hoje. Que honre seus sonhos, respeite seus desejos e também seus limites. Que use a maturidade, quando vier, a seu favor, como facilitador. Que a lei não amordace seu instinto. E que me ajude a fazer o mesmo.

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Eleições

“O que é capitalismo selvagem?”, perguntei ao meu pai, bem pequena. A música dos Titãs tocava na rádio. Os anos 80 eram o presente. A pergunta era interessante. E ele prontamente me apontou os sinais do capitalismo sob sua ótica. Desigualdade social. Pobreza. Inflação. Abracei aquela parte da verdade e na próxima vez em que vi um morador de rua, não hesitei. “Olha, pai! Um capitalismo selvagem!”. A mente de uma criança é uma coisa fabulosa e misteriosa. Crianças olham. Elas veem histórias.

Nessa semana de eleições municipais, pensei na minha associação lúdica e ao mesmo tempo avessa ao universo político-eleitoral. Eu torcia pela esquerda como por um time de futebol. E, ao mesmo tempo, tinha raiva dos homens que passavam a noite lá em casa fumando e discutindo a revolução. Eu os via de relance quando acordava para fazer xixi e ouvia frases soltas como “a quarta internacional”.

Minha tia, que não dava a mínima pra esse universo dos meus pais, confessou ter ficado surpresa em uma reunião secreta do que viria a ser o Partido dos Trabalhadores, no “quartinho” do quintal da casa da minha avó, na época em que todos eles estavam na faculdade. “A revolução é iminente”, ouviu ali dentro. Saiu eletrizada, surpresa com sua ignorância diante de algo grandioso e iminente. Depois perdeu interesse. Não era iminente coisa nenhuma.

Meus pais não. Acreditavam. Viajavam clandestinamente. Reuniam-se. Deliberavam. Pediam a voz. Tomaram uns tapas por aí, foram presos, julgados e liberados. Com meu nascimento, os caminhos políticos começaram a se divergir e, passada a derrota do Lula em 1989, chegou ao fim aquela união político-amorosa. Naquele mesmo ano de 89, a decoração do meu aniversário de 7 anos foi de estrelas do PT. As surpresinhas, broches vermelhos estrelados e adesivos de campanha. Tirei foto com o Lula, mas perdemos a eleição. E meus pais se separaram.

Ainda vi o Lula outras vezes. Meu pai foi presidente do PT em nossa cidade e numa noite dos anos 1990 em que ele devia escoltar o candidato à presidência, não teve dúvidas. Colocou também eu e minha irmã no centro do cortejo de homens de braços dados que descia a rua principal da cidade. Histórias como essa, da minha infância politizada, têm apelo com alguns ouvintes. Sobretudo com os “cabeças-aberta” que nasceram em lares mais “caretas”. Consigo entender. Mas a realidade é que passei mais finais de semana na feijoada ou churrasco pra arrecadar fundos pra campanha do PT do que no clube ou na pracinha.

Conheci várias gestões do PT regional, seus candidatos; depois do sindicato. Havia muito tédio, e também outras crianças desinteressadas por aquilo tudo. Criávamos brincadeiras, metas e desafios, e sempre havia certa competição pra ver quem ia conseguir ir embora primeiro. Às vezes nossos pais se desentendiam numa reunião, e aquela criança sumia do círculo. Na falta circunstancial de companhias infantis, me imiscuía facilmente entre os adultos. Aprendi com eles a sambar e a assoviar com dois dedos na boca. Era um exemplo de “companheira”.

Em 1994, pra provocar, declarei firmemente meu apoio a FHC. Não me deram muita confiança, então abandonei a ideia. Em 1998, já adolescente, tirei outra foto com o Lula, que agora estava bem mais pop e disputado. Saiu no jornal e tudo, mas ele perdeu de novo. Eu estava na flor da idade revolucionária e usava camisas do Che Guevara, ouvia Rage Against the Machine, sonhava em ir a Cuba, desenhava bandeiras dos Estados Unidos de cabeça para baixo na capa do meu caderno da escola, lia livros como “O príncipe” (Maquiavel), “A ilha” (Fernando Morais), “As veias abertas da América Latina” (Eduardo Galeano) e sabia a diferença entre Libelu e Estratégia.

Em 2002, na ressaca daquela euforia, ainda tentei uma terceira foto, mas fui esmagada e meu porta-retratos, estraçalhado pela multidão. Não consegui a foto; abandonei a muvuca e a política. O Lula ganhou. Foi a primeira e última vez que votei para presidente. Desde então, estive fora, viajei, não fiz questão mesmo. Das eleições municipais, só votei em uma. Não é um manifesto. Simplesmente foi assim. Precisei ceder uma parte boa da minha infância em nome de uma causa que não era a minha. Cresci ouvindo como resposta “depois das eleições” ou “depois da greve” ou “depois da campanha salarial”. Me senti injustiçada. Muitas vezes. E não quis que minha vida, a partir do momento em que coubesse a mim decidir, fosse regida por esse calendário, arbitrário a meu ver.

Foi morando na França que fui perceber minha admiração por seu Estado, presente, e sua tradição, de esquerda. Meu respeito pela organização dos sindicatos. Pela sindicalização de toda e qualquer profissão ou ofício. As greves e piquetes, que eu tanto detestava, acabaram mexendo comigo. Como a defesa – no grito – dos direitos dos imigrantes, dos exilados. A paralisação completa da rede ferroviária do país diante da ameaça de sua privatização; dos jovens sem penetração no mercado de trabalho; dos trabalhadores afetados pela mudança na idade de aposentadoria. Me emocionei, algumas vezes, vendo na França um país comprometido.

Pensei no meu pai lá em Minas, microfone na mão, rouco, até hoje defendendo campanhas salariais das escolas municipais no meio da rua. Vi o homem; atrás do pai, do sindicalista. E vi uma história.

O camponês e o marinheiro

Hameau é uma palavra francesa que nomina um aglomerado tão pequeno de moradias que não chega a ser uma vila ou aldeia. Não há igreja e a pedra fundamental desta micro-comunidade foi, tradicionalmente, uma fazenda. Viajando pelas estradas menos movimentadas da França, são muitos os hameaux, nem sempre designados por placas. Cinco, quatro, três e até duas casas podem ser a totalidade de um hameau. Uma singularidade francesa que nos fala de uma demanda particular. De uma cultura erguida sobre alicerces rurais.

Há pouco vi o documentário “Ibitipoca, droba pra lá”, de Felipe Scaldini, um conterrâneo meu. O filme tem como locação um lugarejo próximo a nossa cidade. Ele mostra a região; dá voz a pessoas dali. Ibitipoca é muito familiar aos quem vêm da Zona da Mata mineira. Crescemos indo lá. E nossos pais antes de nós. Antes de haver um parque nacional. Antes de haver giftshop, mapas e guias. Quando não era certo de chegar; dependia das chuvas, do barro. Quando o habitante do arraial era dali, desde sempre. Quando só tinha um orelhão. E muitos cachorros, em bando. Hoje o lugar cresceu, tem muito mais infraestrutura e atraiu muita gente interessada em viver ou passear no mato. Já deve ter até internet. Scaldini foi atrás das pessoas que ainda estão lá, margeando pousadas e centros de informação ao turista. Elas nos falam do que mudou, do que permanece.

Minas e França têm quase o mesmo tamanho. O mar de morros que ondula no interior mineiro replica a sequência de fazendas e áreas cultivadas do interior da França. Cidadezinhas. Uma atrás da outra. Respeitando-se as devidas diferenças históricas e arquitetônicas, está claro. E mineiros e franceses têm suas semelhanças. São dados a longas horas na mesa do almoço, à apreciação de comes e bebes sem economia de calorias e vísceras de animais. É verdade que desconfiam do diferente, mas a abertura que concedem aos de casa não tem reservas. Afinal, um convidado nunca é mandado embora e nunca se vai antes do café. São ambos apegados à maneira correta de fazer as coisas, ao vinho ou à cachaça. A não ter pressa. A deixar as coisas tomarem o tempo que demandarem. A contar caso. Há quem diga ser preguiça, mas eu chamo de gozo pela vida. Afinal, correr pra quê e até onde? A pressa atrapalha o zelo pelas coisas, tira o regozijo do fazer. E mineiros e franceses fazem bem feito e, preferencialmente, com deleite. Gostam da terra, de ficar no mesmo lugar, de saber da sua história.

Dizem que na literatura existem dois narradores: o marinheiro e o camponês. O primeiro viaja o mundo e conta do que viu. É estrangeiro, é imigrante, é náufrago. Sua condição é o exílio. Sua sina, não pertencer. Um observador condenado. O segundo é o que fica. Que vê o forasteiro visitar suas terras. Que vê as chegadas e partidas sempre do mesmo lugar. Ele sabe de si e do seu povo. Se confunde com a própria terra. Porque passou a vida inteira no mesmo lugar, e isso ninguém tira dele. Esses dois narradores, dizem, dão conta de todas as histórias contadas. Eles são os narradores de fundação.

O fotógrafo e cineasta francês, Raymond Depardon, é um camponês. Essencialmente. Cresceu no campo, vem de uma família de camponeses. Fala de casa, fala dos seus. Quem assiste a seus filmes, vê suas fotos, se encontra no mais particular do outro. Porque o íntimo é sempre humano. E o humano é universal. Pensei muito no Depardon esses dias, em seus “Profils Paysans” (Perfis camponeses), sua trilogia sobre a região onde cresceu. Belo. Simples. Tocante. São lentas as longas horas com os personagens, visitados por Depardon ao longo de mais de 10 anos. Ele saiu de lá, quando moço, mas ouço desde criança que o campo não sai de nós. Depardon é impregnado da campagne francesa.Porque conhece seu ritmo, tomou para si a década de que precisou. Se aproximou, penetrou, viu de novo o lugar de onde veio, como um estrangeiro na própria casa. Um mergulho no útero de onde saiu. E isso requer coragem. Mais – muito mais –, penso eu, do que para sair.

Dada à inquietude, tenho o hábito de partir. E, nessas idas e vi(n)das, fui parar na França. As Minas da Europa. Um exílio aconchegante, mas temporário, visto que navegante sofre de um mal. Pertencimento é terra à vista. Quando se toca o solo, é hora de partir de novo. Uma coceira sem fim. Lar parece estar sempre ali, logo ali. Na próxima parada. Mas não passa de miragem do viajante dos mares, de uma prisão dos desassossegados. Assim, deixei, também, a França, mas ela veio comigo. Entrou sob minhas unhas e ficou. Como terra avermelhada. Até Minas Gerais.

Céu no interior da França (Auvergne, 2010), by Maria Bitarello

O presente do amanhã

No último final de semana, descobri um hóspede indesejado na minha casa. Um rato, grande, embaixo do tanque de lavar roupas, me deixou uma noite em claro, à espera da manhã e de alguém, um herói. Meu zelador, Roni Von, veio matá-lo, tirá-lo do meu presente. Vi seu corpo morto, cabeça aberta, o sangue. Mas, ainda mais vezes, vi seu corpo vivo, esguio e veloz, sua cauda subindo pela parede. Nosso brevíssimo encontro revivido, incessantemente, na minha cabeça. É minha fantasia dos fatos em plena atividade, distendendo a tormenta no tempo. Espremendo o presente fugaz ali entre o passado, traumatizado, e o futuro, antecipado, lá onde habitam outros ratos que poderei encontrar, que poderão entrar na minha casa, expor a fragilidade do meu abrigo, de mim mesma. O magnífico mundo das possibilidades, do medo sem nome, da antecipação do pior que nunca vem, ou que vem disfarçado.

É o quarto 101. O maior vilão de todos os tempos. O aposento para onde caminha a narrativa de “1984”, de George Orwell. Lá mora nosso maior medo, nossa fobia, nossa forma de tortura singular e customizada. Winston Smith, o protagonista solitário da ficção-científica, escrita em 1948, desce o corredor a caminho de sua loucura. Nem ele poderia conceber, contra si, sadismo tão perverso. Tampouco sabia o tamanho de sua repulsa. A ratos. Uma repulsa bem maior que a minha, com certeza. Até domingo, eu não pensava neles. Não particularmente. Mas a vida é cheia dessas coincidências, e dois dias antes eu havia visto “Cosmópolis”, de David Cronenberg, no cinema.

A ficção se passa em uma Manhattan alegórica da übermetrópole, um cenário de pré-apocalipse. E o filme abre com uma citação sobre roedores: “Um rato tornou-se a unidade monetária”. O fim dos tempos de usurpação. Manifestantes parodiam Occupy Wall Street e invadem restaurantes segurando ratos mortos pela cauda, protestando contra o futuro. “Eles querem adiar o futuro”, é o que explica a Chefe de Teoria do protagonista, “porque ele tomou conta do presente. Quanto mais inovadora uma ideia, mais pessoas ela deixa pra trás”. Cronenberg sugere que o colapso financeiro é incontornável. E o que vem depois é o retorno à moeda de base, não flutuante, aos ratos. Só assim haverá futuro. Um presente lá na frente.

Pois bem. Cronenberg é um cara cismado. Os cenários, episódios e personagens de suas histórias brincam com o mesmo fetiche: a violência. Que, arrisco, deve ser também seu maior medo. Filme após filme, ele exorciza uma parte desta ameaça. A parte nominada. Desenha um círculo ao redor do que viu até ali e diz: isso é violência. Como isso não basta, logo vem outro filme: aqui também é violência. E é um deleite ver alguém perseguir seu objeto de fascínio e repulsa com tanta diligência.

Se é verdade o que diz Caetano Veloso, que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, então todos temos uma surpresinha nos aguardando dentro do quarto 101. E os demônios que Cronenberg encontra ali são irreproduzíveis em seus filmes. O medo em estado puro que não alcançamos. Porque pra escrever, pra falar, pra filmar, nomeamos. Apontamos o dedo, demarcamos o objeto ou a pessoa ou o sentimento. Como peças de museu. Cronenberg batiza seu medo. Seu pesadelo em vigília. Orwell também, sua distopia totalizante. Vivem, ambos, a catarse através da arte. Pra não precisar entrar no quarto de onde ninguém retorna. Pra não precisar matar, roubar, violar. O rato marca o fim e o recomeço. O último estágio do apocalipse. A fissura.

Há pouco tempo um amigo me perguntou por que sempre escrevo sobre memórias, por que volto no passado, falo das perdas. Significo meu presente através da recordação, pensei. A vida é uma sucessão de perdas e de pequenas mortes. E estes sepultamentos nos libertam. Vivemos o luto pra não virar pesar. Fazemos das memórias um presente. Elaborando pra entender, articulando pra prosseguir.

Respondi a meu amigo que não sei falar sobre hoje, sobre o amanhã, porque ainda não deu tempo de entender, de digerir. Porque “a vida é muito contemporânea”, como disse a personagem de Juliette Binoche em “Cosmópolis”. E eu acho que concordo. Não alcanço o presente. Sempre me escapa. Quem sabe não é ele que me aguarda no quarto 101. Nestas histórias, ele vem após os ratos. O meu rato já veio, já emoldurei. Talvez eu esteja próxima, então. E o presente não ficará mais povoado pelo passado, nem apressado pelo futuro. É tempo de criar algo novo.

Carnavalesco na Place de la République, em Paris (fevereiro de 2010), by Maria Bitarello