O cheiro das baleias

No final do feriado, voltando para São Paulo de ônibus, vi muitas queimadas na beira da estrada. Uma atrás da outra. Algumas erráticas, como é da natureza do fogo que se alastra; outras ordenadas, desenhando linhas que entregam a intenção por trás daquele ato de devastação. Por vezes sentimos o calor das labaredas; ouvimos seus estalos. O fogo dá medo e fascina. Não dá pra saber quando ele já ultrapassou o ponto de controle e quando ainda dá pra evitar uma catástrofe.

Olhando pela janela do ônibus na madrugada, fui levada, sem meu consentimento, à Califórnia, onde as temporadas de queimadas costumam durar uma boa parte do verão. O fogo se alastra por hectares e pelas semanas.  Morei em Los Angeles, mas de lá não via o fogo, somente seu rastro. Fuligem. A poeira cinza sobre os carros. O ar turvo, irrespirável. O calor não arrefece à noite, e as madrugadas de 35˚C acontecem mais de uma vez. Não há umidade, a garganta seca, os olhos irritam. O mundo parece arder sob o céu, e o pôr-do-sol neste inferno é de uma beleza marciana: de trás das nuvens espessas, o Sol, vermelho, incandescente. Seu contorno circular através do filtro de fumaça é nítido como se fosse feito a pinceladas.

No verão de 2008, viajei para São Francisco de carro pela PCH – Pacific Coast Highway, ou simplesmente Highway 1. A paisagem muda gradualmente do deserto angelino para a umidade enevoada da baía. Entre eles, vinícolas, litoral e as colinas amareladas de San Luis Obispo, entremeadas por bosques de um verde mais intenso. Da estrada, vê-se o castelo de William Randolph Hearst, o magnata das comunicações americanas, inspiração para “Cidadão Kane” de Orson Welles. O caminho pela costa contorna a barriga litorânea que se insinua sobre o Pacífico. Ali no meio, estreita e tortuosa, a estrada se espreme em uma beleza só sua, tão distinta da que vemos nos trópicos.

Com a proximidade de Big Sur, surgem rochas monumentais nas praias. No som do carro, Beatles. Do outro lado da pista, a borda de Los Padres National Forest. As queimadas corriam paralelas, pelo interior do parque, longe do meu olhar, mas pintando o céu de laranja, num entardecer que eu insisto em não esquecer. O calor era abrasivo. E o caminho foi interrompido. Sem forma de prosseguir ou contornar, só pude voltar atrás. Mais de 200 km até a última parada avistada. Cheguei junto com os últimos raios de Sol daquele dia de junho, os mesmos que confundem motoristas no lusco-fusco.

O frentista se orgulhou ao encher o tanque do meu carro com “a gasolina mais cara da América”, foram suas palavras. Atrás dele, um restaurante e uma pousada, simpáticos embora ordinários, davam o tom de raridade daquela parada: preços exorbitantes. Não havia muita gente passando por ali. Não era rota pra lugar algum. E passei uma noite no quarto, lá no alto, empoleirado sobre o restaurante. Abaixo deles, a estrada, e logo o Pacífico, ao infinito. Cada um a poucos metros do seguinte. Whale Watchers Café, dizia a placa. Nas épocas certas do ano, os turistas mais informados que eu sabiam que aquele era um ponto privilegiado para observação da migração sazonal de baleias.

Senti-me afortunada. Queria chegar a Big Sur, conhecer mais um lugar por onde passou Jack Kerouac. Mas no meio do caminho havia fogo e baleias. Nem liguei de não ser temporada de migração, só de queimadas mesmo. Já estava ali, senti que ali deveria estar. Da minha janela, olhei o mar durante a noite, e na manhã seguinte contornei a floresta, por Paso Robles, antes de voltar a rumar norte. Nunca mais ouvi falar desse lugar. Nunca mais paguei US$ 6 pelo galão de gasolina.

Cada um tem a madeleine que merece. Para Proust, foi o bolinho que o transportou à infância. Para Hearst, o cidadão Kane, foi o trenó, rosebud. “The more you remember something, the less accurate the memory becomes (…) If you prevent the memory from changing, it ceases to exist” (Quanto mais você recorda, menos precisa se torna a memória (…) Se você impedir a mudança de uma lembrança, ela deixa de existir), li esses dias no livro de Jonah Lehrer, “Proust foi um neurocientista”.

Aquela foi a mais bela viagem de carro que já fiz. Ou então é minha memória, danada, que me prega peças. Que não me corta quando embelezo certos pontos e omito outros. Que me deixa mentir, criar, inventar. Lembranças são sorrateiras, nos tomam de assalto. Às vezes, até com cheiro de madeira queimada. Outras com “Two of us”, dos Beatles. “You and I have memories, longer than the road that stretches out ahead” (Eu e você temos memórias mais longas que a estrada que se estende à nossa frente). Numa travessia à beira mar em que deu tempo de retroceder e contornar as chamas, estranhamente, eu andava para frente. E não andava só.

Vista do Whale Watchers Café na Pacific Coast Highway – Califórnia, Estados Unidos, by Fábio Nascimento

Independência ou Morse?

Não sou muito ligada em datas comemorativas. E sou particularmente desinteressada por celebrações de 7 de setembro. Não me lembro nunca de ter assistido a uma parada militar. Vai ver me falta uma relação afetiva com os feriados, pois o único do qual me lembro vividamente é o 7 de setembro de 2001, em Washington D.C. As universidades federais brasileiras estavam em greve e eu, no segundo período de jornalismo, decidi tirar um período sabático para visitar minha mãe nos Estados Unidos. O imperativo maior, contudo, foi o Morse. Por causa dele, passamos o 11 de setembro na capital. Eu e minha irmã, que ainda estava no colégio. E, graças a ela, seis meses atrás, conheci Matthew Shirts.

Naquele Dia da Independência, amigos e familiares de Richard M. Morse se reuniram na universidade e depois em sua antiga residência para celebrar sua vida e obra. O ilustre professor e mestre havia falecido em abril daquele mesmo ano, deixando saudades. Morse foi orientador de doutorado e grande mentor intelectual da minha mãe. Era um respeitado brasilianista: um gringo que estuda o Brasil. Escreveu, dentre outros assuntos, sobre a cidade de São Paulo, que hoje chamo de lar. Era amigo de uma turminha fascinante: Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Octavio Paz, para citar os indiscutíveis. E, em 1992, persuadiu, sem grandes esforços, minha mãe a pesquisar a América sob sua tutela.

Essa é a história de como nós três – eu, minha mãe e minha irmã – fomos para D.C. pela primeira vez. E passados quase 20 anos desde aquela viagem e 11 de sua partida, as piadas do professor ainda recheiam nossas conversas mais animadas, um de seus manuscritos originais repousa no escritório da minha mãe em Minas e a “máfia do Morse” segue ativa.

A expressão não é minha, é do meu chefe. “Quem é esse cara?”, foi o que perguntei, anos atrás, apontando o nome dele no verso de uma caneca misteriosa que residia no armário da cozinha da minha casa. “Um amigo do Morse, que mora aqui no Brasil. Ele me pediu pra entregar a caneca, mas nunca encontrei com o Matthew. Ele mora em São Paulo”, minha mãe respondeu. A caneca foi ficando; certa vez caiu no chão e não quebrou. Até que foi a vez da minha irmã aparecer com o desdobramento da pergunta. “Mãe, você conhece o Matthew Shirts?”, ela perguntou olhando a mesma caneca. “Vi ele uma vez só”. “Mãe, ele é o editor-chefe da National Geographic Brasil!”

É claro que ela sabia quem era o cara da caneca. Minha irmã começou a ler cedo, e lia muito. Sua biblioteca da primeira infância era composta de revistas da Turma da Mônica, relíquias hoje empoeiradas em caixas de leite. O passo seguinte foram as revistas National Geographic – algumas datando da época em que ainda se chamava Geográfica Universal, da coleção do meu avô. As linhas amarelas que emolduram a capa formavam um portal para o futuro fantástico em que ela faria descobertas fósseis na África e usaria roupas cáqui em acampamentos científicos. Porque, pra ela, não era só uma revista, era um sonho. O sonho de se tornar paleontóloga, uma cientista.

Quando me mudei para São Paulo, o Matthew foi a primeira pessoa que procurei. Porque aquela caneca pedia fechamento, ou quem sabe continuidade. “Tenho algo que te pertence”, eu disse a ele sorrindo, “e acredito que temos um amigo em comum.” Dois dias depois, ele me ofereceu trabalho. Aceitei. E agora o vejo todos os dias na redação. Ele e a caneca, que descansa em sua mesa.  A “máfia do Morse” é coisa dele. E no final de junho, nós, mafiosos, jantamos juntos na Vila Madalena.

Eu não sonhava em ser cientista como minha irmã, mas me deliciava com histórias. Com as narrativas que os encontros contam; os pontos invisíveis que ligam episódios. Porque como disse Proust, “cada memória é inseparável do momento em que é recordada”. Sem Morse, eu não lembraria de nenhum 7 de setembro. Sem minha irmã, não conheceria Matthew. E sem eles, a caneca branca não daria uma história.

Outono em Capitol Hill, Washington D.C., Estados Unidos, by Maria Bitarello

O caminho dos objetos

Têm coisas nessa vida que a gente não vende. Só dá. Livros, instrumentos musicais, câmeras de fotografia analógicas e bicicletas são algumas delas. Não há como botar um preço na história. São coisas que aparecem na nossa vida quando precisamos delas, e que depois deixamos ir, quando alguém precisa delas mais do que nós. E quando ganhamos um objeto usado, ele traz consigo uma história que continuamos escrevendo, dali em diante. Me peguei pensando nisso pelo muito que tem se falado em novas ciclovias, promessas eleitorais de uma cidade menos motorizada. Eu, que há pouco virei ciclista em São Paulo e que sempre adorei herdar objetos usados e passar adiante os meus, com critério. E, nesse devaneio, percebi que me lembro de todas as bicicletas que tive. De como chegaram e de como se foram.

A primeira sem rodinhas foi também a última comprada nova, em loja. Foi presente de Natal de 1987, a Caloi Ceci amarelinha. Os anos foram passando e ela foi ficando. Foi sendo adaptada, aos poucos, a minhas idades que se sucediam. Primeiro tirei a cestinha, depois a carregadeira e por fim os dois para-lamas. Subi o selim e o guidão ao máximo. Ficou comigo até não me caber mais. Até quando já não dava mais pra ler a marca na lateral do quadro. Nessa bicicleta virei menina.

Ela seguiu seu caminho quando nos mudamos para os Estados Unidos, e em Washington D.C. apareceu minha única bicicleta com freio de retropedal, do qual não gosto, aliás. Custou US$ 12 num bazar e foi roubada dali a um mês, num bairro tão pacato que eu a deixava jogada na entrada da casa, sem portão. Dela arremessei jornais nas portas vizinhas com meu amigo, Justin, nas manhãs frias de Maryland. Não tinha marca discernível, mas era uma mini-mountain bike, e me senti crescida.

Na sequência veio a Peugeot (zinha). A favorita. Custou US$ 25 e não tinha marchas. Era pura coxa. Está até hoje em Minas Gerais, negligenciada, porém guardada. A corrente soltou e os pneus esvaziaram, mas não consigo jogá-la fora. Recebi algumas ofertas por seu quadro, um suposto espetáculo da engenharia ciclista, mas nunca cedi. E depois dela, não sei por que, fiquei uns anos sem bicicleta.

Foi só após a faculdade, em Los Angeles, que encontrei a nova magrela: abandonada no meio da rua com o passador quebrado. Era uma Schwinn vintage, vinho, urbana, pneus de pista, para meninas. O selim era duro e o passador de marchas, no centro do guidão. Um tesouro desprezado. Fiquei com ela até deixar a Califórnia, embora tenha usado-a bem menos do que gostaria – o trânsito lá era selvagem para ciclistas – e, seguindo meu código ético, deixei-a com um amigo.

Em Paris, encontrei outra Peugeot (zinha). Que coisinha linda. Modelo pioneiro de bicicleta dobrável ao meio. Pequena. Branquinha. Farol movido a dínamo na roda. Andei com ela um inverno parisiense completo, exceto nos dias de neve, e com ela fiz compras na feira todos os sábados. Me manteve em forma e afastou a melancolia cinza dos dias curtos. Porque a vida é muito mais gostosa pedalando. E no verão ela se foi, aos poucos, da minha vida. Primeiro o banco foi roubado, e eu ainda continuei pedalando, em pé. Depois levaram uma roda, depois a outra, e, por fim, deixei-a na rua para que levassem o resto. Deixei que voltasse pro mar, como oferenda de fim de noite de Réveillon na Praia de Copacabana. Essa bicicleta me fez muito feliz.

Aí veio a Motobecane. Verde fluorescente, quadro feminino, urbana, veloz e conservadíssima, ela tinha muito potencial, mas não viveu o suficiente para honrá-lo. Só durou um inverno. Achei-a num anúncio online, baratinha, de um senhor francês. Pra pedalar, era obrigada a ficar numa pose empinada que eu achava muito profissional. Nem sei se era mesmo, mas me sentia veloz. Foi roubada na frente do meu apartamento. Tive muitas outras coisas roubadas, inúmeras em Paris mesmo. A frustração é a mesma. E o momento da percepção do furto é sempre de violação.

Desencanei um tempo, fiquei desapontada com tantas bicicletas indo assim, antes da hora, e peguei emprestada a de uma amiga, toda empenada, enquanto ela estava no Togo. Depois dela, uma Arcade dobrável teve uma passagem relâmpago por minha vida, sem deixar marcas. Era um fetiche urbano (pequena, dobrável, descolada), mas não gostei. Foi a única que vendi. Não estava numa época boa e talvez fosse meu inferno astral, sei lá. Ela apareceu de forma estranha e fiquei aliviada quando se foi.

Passei um tempo só na garupa. A holandesa do meu parceiro era alta e confortável, sem marchas. Gosto de pensar que, apesar de sua força física, meu bailar ali atrás também contribuía para nosso fluxo. Porque ser carona requer suingue. E não é todo mundo que sabe soltar o corpo nas curvas e facilitar a inclinação lateral.

O que me traz, enfim, à bicicleta atual. A maior barganha que encontrei em São Paulo. Barata, montada numa garagem sem nome e sem placa, em Pinheiros. Não tem marca, nem garantia. Estamos nos entendendo bem, embora o preço se reflita em sua performance. E São Paulo, ao contrário de Los Angeles e Paris, tem morro. Voltei a subir na coxa e – vai entender – pensei no André. De todas as pessoas que contribuíram para meu equilíbrio progressivo sobre duas rodas, me oferecendo suporte físico e moral quando me faltavam ambos, foi esse amigo de tantos anos da família que me colocou nos eixos.

“Você é uma mulher ou um rato?”. Esse era meu mantra aprendendo a andar na Caloi Ceci, aos 5 anos. “É claro que você é uma mulher! Agora prove!”. A aposta era sorridente, e ele me olhava firme nos olhos quando eu tinha medo. Ele acreditava em mim, na mulher que eu ainda não era. Uma confiança que me faltava e que ele podia me dar. E a partir daquele momento, minha conquista do equilíbrio seria também a dele. Tínhamos um pacto.

Ainda hoje, quando tenho medo, me lembro do André e de sua provocação. E ainda me esforço para honrar aquele olhar. Sei que, hoje, é ele quem precisa encontrar nos meus olhos, em nosso pacto renovado, a força para continuar sendo o homem que me ensinou a não ser um rato. Talvez façamos um novo passeio de bicicleta, agora juntos.

Coragem e colhões

No dia em que contei a meu grande amigo e diretor de cinema, José Sette, que eu tinha conseguido meu primeiro emprego como jornalista ele reagiu com pesar. “Perdi você para essa merda do jornalismo”, foram suas únicas palavras. O Zé foi o primeiro cineasta com quem trabalhei. Comecei no segundo período da faculdade como assistente de produção de um curta-metragem seu e conclui a parceria com a direção de produção, assistência de direção, braço direito e esquerdo e assessoria espiritual de seu longa-metragem, Labirinto de Pedra, no final da faculdade. A gente costumava sentar ao fim do dia pra conversar sobre as próximas gravações ou discutir uma locação.

As horas voavam, eram mágicas. A atenção que ele me cedia, inestimável. Entre muitos cigarros, ele prolongava as sílabas das palavras mais langorosas ao contar do exílio, fazia perguntas desconcertantes para introduzir um manifesto do cinema marginal, maldizia com superlativos o cinema atual em nome do Glauber, se emocionava com o expressionismo alemão e me cortejava com aulas teóricas sobre películas, formatos e sensibilidades de filme. Foram horas passadas em seu ateliê, entre seus filmes, câmeras, livros e quadros. Horas que agora repousam, com louvor, no alto da estante de memórias que mais estimo.

Hoje é Dia do Artista e pensei no Zé, que não vejo há anos. A lembrança me levou, com carinho, a outros artistas que povoam minha vida e até meu cotidiano. Minha fantasia de infância era viver um mundo de arte e criação, de ideias e experiências. Não sabia, então, a extensão dessa vontade, que me levaria a casar com um deles. Naquela época, eu desconfiava, mas não sabia, que a gente não escolhe se vai ser artista – é ela, a vida bandida, que nos cutuca, por trás, e no escuro. Falta de vocação ou de coragem, fico desde sempre a margeá-la, sem pular na piscina. Me contagio, me impregno e até me surpreendo quando me encontro na criação do outro. Numa música, numa foto, num quadro, num capítulo ou personagem.

Meu grande amigo escritor pulou. Ele tem o livro pronto na cabeça antes de escrever. Como? Não sei. Fica tudo ali, frases, diálogos, passagens, episódios; todos eles alinhados, com numerologia e etimologia consideradas, esperando a caminhada ao redor da praça pra decidir em que capítulo – ainda não escrito – morre o protagonista. Não consegue parar. Não pode evitar. Cria, recria e fantasia tudo. Sonha em não fazê-lo. Em viver sem criar uma história. Ainda não conseguiu e, enquanto isso, esse sonho também vira uma história.

Outro que não teve escolha foi um amigo e músico francês. Esse me assusta. Vê-lo compor é um verbo no presente: tudo ocorre enquanto o almoço fica pronto, o telefone toca e ele brinca com o violão entre duas tragadas no cigarro. Simplesmente sai. Derrama. Diferente de um amigo músico brasileiro. Com ele não é natural. Não sai fácil. Sai estranho. Sai espremido. E numa tarde de conversa jogada fora ao sofá ele me diz que para sair dez músicas que prestam, só mesmo jogando fora outras 60. “Quando você começa a compor, a primeira coisa que vem é o clichê. Aí você deixa vir o que tem que vir. Gasta esse clichê, até chegar em outra coisa, em algo melhor.” Stanley Kubrick também achava isso. Que o melhor vem do cansaço. Quando paramos de tentar demais. Quantos takes são necessários para isso? Trinta, quarenta? Não importa. Tudo o que vem antes é preparação para o take perfeito. Rascunhos. Faixas descartadas.

Acho tudo isso fascinante, como é para cada um deles. E penso no Truffaut, que tem uma frase muito boa. Ele nos diz para que “nunca esqueçamos que as ideias são menos interessantes que os seres humanos que as criam, modificam”. Sorte ou sina, tenho muitos artistas ao meu redor. E a convivência nem sempre é suave. Tampouco acho que seja do gosto de muita gente. Quando só temos contato com a obra, e não com o autor, não precisamos conviver nem amar a pessoa privada pra admirar a pessoa pública.

Mas lidar com os artistas, diretamente, é uma experiência distinta. Às vezes a vaidade é quase infantil. Também acontece de serem monotemáticos, obsessivos, até chatos. Muita gente se ofende e entendia mais do que se encanta. A ironia e o sarcasmo podem ser ácidos demais. O julgamento, exaustivo. A necessidade do aplauso, enfadonha. Entendo tudo isso, mas ainda acho que vale a pena. Criar é um tormento que deixa marcas, e a admiração que elas inspiram anda lado-a-lado com a repulsa. É preciso colhões, paciência e, sim, autoconfiança para assistir ao parto prolongado da obra até o fim e não ser arrastado para a lama quando o outro se atola. Mas para quem aguentar, eu prometo que vale a viagem. Vale por aqueles momentos – efêmeros, é claro – em que vemos o mundo com eles.

Tive uma queda pelo Nietzsche na época da faculdade. “Só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente”, li e fiquei de quatro, no ato. Queria ter conhecido o cara. Conversado com ele. Passado horas em sua companhia, como fiz com o Zé e ainda faço com tantos outros. Meu professor e mentor percebeu o fascínio e lançou o desafio: “Queria ver quem aqui conseguia ser amigo de um cara desses lá na época em que ele estava escrevendo essas loucuras aqui. Vocês sabem onde ele chegou pra escrever isso?”. Eu não sabia, mas estava disposta a descobrir. “Eu. Eu seria amiga dele”, dizia a mim mesma, desafiando com os olhos.

Acabei descobrindo muitos lugares sombrios da criação, e tantas vezes passei por eles de mãos dadas. Não tive escolha: quem me pedia a mão era o artista, o amigo, o amante. Não neguei. Pulei. Dei a volta pelo caminho mais longo, mas acabei, eu também, dentro da piscina. Acho que o Zé ficaria satisfeito com a jornalista que me tornei. Que não teve coragem, mas teve colhões.

A virada do jogo

No penúltimo dia dos Jogos Olímpicos de Londres, a seleção brasileira de vôlei feminino venceu a americana, embora tivesse começado perdendo o jogo. O ataque não estava dando certo, mas a recepção, o saque e o emocional estavam em alta. Um dos comentaristas chamou atenção para a sabedoria que rege o comportamento dos atletas quando, diante de apenas uma falha no sistema operacional, conseguem seguir fazendo bem aquilo que está funcionando. E o resultado e a verdade disso é que com o passar dos sets, o jogo delas se acertou, o fundamento que estava manco voltou a caminhar sobre duas pernas e elas venceram de virada. Algumas horas depois da partida, fui ao cinema assistir à pré-estreia de 360º, novo filme de Fernando Meirelles, e esse comentário ficou ecoando dentro da minha cabeça.

Todos os personagens do filme estão envolvidos em relações amorosas, apaixonadas, complicadas, adúlteras ou desgastadas, adjetivos a que estão sujeitos aqueles que se casam ou se juntam. Como o vôlei, os casamentos têm épocas boas, leves e aparentemente desprovidas de esforços, e outras mais ásperas, truncadas e laboriosas. Tanto um como outro vivem de repetições, tentam romper os vícios de comportamento ou de jogadas e são fonte de grande alegria e de imenso tormento. Reconheci, em silêncio, na sala de cinema, o quão difícil é seguir adiante quando um fundamento falha, ainda que os demais sigam bem. Como esse lugar do equívoco insiste em sugar nossas melhores energias e pensamentos e enterrá-los sob escombros de frustrações e ressentimentos que, se não tratados, viram mágoas que engessam no peito e endurecem na cabeça.

O filme de Meirelles traça um círculo ao redor de personagens interconectados e brinca com o ciclo dentro de relações isoladas. Ele nos mostra momentos de escolhas: por continuar junto ou pela bifurcação. Numa vida de casados, há ofertas tentadoras pelo caminho. Outras pessoas, outras vias e vidas, outros sonhos. Há, também, imperativos: filhos, rotina, dinheiro. E quais nossas razões para ceder a elas? Curiosidade, insegurança, fadiga; somos humanos, demasiado, humanos. O mitólogo Joseph Campbell me ensinou, em O Poder do Mito, que o casamento é uma provação, uma entrega do ego pela união. E ninguém faz isso sem espernear.

Casamento é difícil e dá trabalho, mas é muito mais legal que o plano b: a vida a dois é bem mais gostosa e até mais fácil. E o segredo de seu sucesso não está em uma fórmula engarrafada. É uma vida de escolhas reafirmadas dia após dia. São essas mesmas escolhas reiteradas que fazem deste pacto algo maleável. As demandas vão mudando com os anos, junto com nossas expectativas e os dois rebolam pra lá e pra cá pra manterem o passo. O casal que acaba dando certo não é o constantemente apaixonado, nem o que briga o tempo todo. Tampouco é o que não pensa em abandonar tudo ou o que fantasia com outras pessoas. Nem mesmo é o casal fiel.

É o que fica. E ficar é andar pra frente, sempre. Senão a bicicleta tomba. Ninguém realmente sabe bem o que está fazendo, exceto que com o andar da carruagem as abóboras se ajeitam. E Meirelles parece saber que isso se faz de dentro do matrimônio, só que pelo furo no ciclo.

Um dia perguntei à minha avó se ela ainda pensava muito no meu avô. “Todos os dias”, ela respondeu. “Não posso afirmar que não houve igual, mas mulher mais feliz do que eu era com o seu avô não teve.” Lembrei do que diz Rilke: “once the realization is accepted that even between the closest people infinite distances exist, a marvelous living side-by-side can grow up for them, if they succeed in loving the expanse between them, which gives them the possibility of always seeing each other as a whole and before an immense sky” (Uma vez aceita a compreensão de que mesmo entre as pessoas mais próximas existem distâncias infinitas, uma maravilhosa convivência lado-a-lado pode nascer entre elas, se conseguirem amar a vastidão entre elas, que as dá a possibilidade de ver o outro sempre como um todo e diante de um céu imenso, em tradução minha).Os 30 anos de casada, 26 de viúva e 53 de vida que nos separam conferem a ela a ciência de algo que eu e os personagens de 360º ainda estamos aprendendo: a não esperar dos que se ama mais do que eles podem te dar. Não há amor sem perdão e somos todos incompletos, inacabados. O que a gente pode fazer é pedalar, pedalar, pedalar até poder soltar outra vez o corpo na descida.

A cura pelo próprio mal

De todas as modalidades esportivas em competição olímpica, apenas duas vêm do que eu chamaria de um instinto primário, derivações de duas ações ancestrais, presentes em todas as culturas e de motivação inquestionável para a sobrevivência: correr e lutar. Nem todas as comunidades primitivas viviam perto d’água para desenvolverem a natação ou utilizavam o arco para caçar, mas nunca ouvi falar de um povo que não corresse – atrás de uma presa ou para não o ser ele próprio presa de outra espécie – ou lutasse – para se defender, para conquistar, para seduzir, para oprimir. E os esportes contemporâneos que derivam desses dois gestos primitivos – como o boxe e o atletismo – têm supremacia negra: os negros são, aí, mais presentes e mais bem-sucedidos.

São nessas modalidades que a técnica de treinamento é posterior ao ato primeiro. Correr é instintivo, fez muita gente sobreviver nesse mundo. E reagir a um inimigo também. Luvas, sapatilhas, ringues e pistas são adereços secundários. Mesmo nós, que não somos atletas profissionais, já corremos e ainda correremos. E muitos, mas não todos, já bateram em alguém. O resto já desejou. É o gesto que vem das vísceras. E é justo aí que reside a soberania dos africanos e afrodescendentes. No físico. E se o esporte só pedisse nosso corpo, eu acredito que a seleção natural da espécie eliminaria, gradualmente, os brancos das competições. Sabemos, contudo, que não é o caso. O psicológico no esporte é uma parte tão grande do treinamento que não dá pra nos contentarmos com o argumento étnico ou nacional. A China não nos mostrou que nem os Estados Unidos são imbatíveis? O que sobra, para além das pernas, braços, pulmões e um bom treinamento, é o caráter.

E o caráter é distribuído de forma aleatória e democrática entre os povos. A verdade é que não são muitos o que são bem equipados na cabeça e no coração para lidar com o esporte profissional. Os que ainda conseguem o corte olímpico descobrem lá, na Atenas da vez, não terem estômago para o pódio. Amarelam. A maioria nem vai. E nessa peneira das mais estreitas – uma vez deixados de lado os adereços –, um branco, um asiático, um indígena e um árabe têm as mesmas chances que um negro de atingir grandeza naquilo que fazem. E como é que o fazem?

Acredito que grande parte do sucesso repouse no doce equilíbrio entre autoconfiança e humildade. É, eu sei que é dureza de alcançar, e mais ainda de sustentar. Nessas horas, os primeiros atletas que me vêm à mente são os maratonistas e os tenistas, etnias à parte. A solidão e a tenacidade destes dois atletas é real. Competições de horas em que ambos estão sempre sozinhos, presos em um corpo que grita e queima antes de atingir a dormência. Sempre arriscando uma diminuição na marcha ou na concentração porque os pensamentos tortuosos que podem os levar rapidamente ao fracasso espreitam a cada devaneio, seja pela soberba, seja pela covardia. E não há uma segunda chance.

Admiro bastante os atletas dotados desta rara capacidade de medir e calcular o presente e, a partir dele, dosar, para distribuir com moderação, a energia que resta nos corpos. E nas mentes. Não saltar nos braços da glória na metade da partida nem aceitar a derrota da vontade a meia-maratona. Dosar até a hora de soltar, a hora de chorar. Porque eles passam à beira de uma forma de loucura, e creio que nem saibam bem como fazem para regressar.

Os Jogos Olímpicos há alguns anos me aprisionam no sofá neste período de júbilo sazonal e suas imagens são as que mais me emocionam – não é algo do qual me orgulhe, acho até um pouco patético. Relaxo, com eles, na hora do gozo. O gozo que eles não tiveram muitas outras vezes em anos de preparação, disciplina, dor, alternância entre lesão e recuperação e abdicação quase total de outros tantos gozos de vida: comer, beber, sentir preguiça, procrastinar.

O espírito olímpico me fez voltar às memórias do escritor japonês Haruki Murakami, autor de um número considerável de romances de econômica beleza surrealista. “Do que eu falo quando eu falo de corrida” é uma espécie de autobiografia breve em que ele nos conta suas percepções da corrida e da escrita, hábitos do teimoso. Maratonista há mais de 30 anos, ele, que hoje já passou dos 60, faz paralelos entre as duas práticas que norteiam sua vida: da constância de ambas, do sofrimento prolongado, compensado pelo momento da chegada, e do desejo de isolamento de seus praticantes.

Pensei nele porque não sei de um povo que não conte histórias. Contar histórias é um ato primário dos homens. Escrever é artifício, uma derivação deste instinto, e a técnica vem ajudar na preservação e perpetuação da memória. Em muitas partes do mundo, até hoje, é ao redor do ancião que o conhecimento é passado. Oralmente, por cânticos, sem livros. O papel e o lápis são os adereços secundários que vieram em auxílio do contador de histórias. Depois deles, tudo é terciário.

Conheço alguns escritores, e muita gente que escreve, e a maioria confessa não gostar tanto de escrever quanto de ter escrito. Na escrita e na maratona, existem mais razões para se abandonar do que para prosseguir. Em ambas, os pensamentos de autoadulação e de autocrítica são igualmente nocivos, e as certezas só aparecem em breves janelas de lucidez. No percurso, há mais sofrimento que prazer e mais medo que coragem. Mas sempre vi a coragem como o impulso que nos leva a atravessar o medo, não a negá-lo. A autora Joyce Carol Oates tem uma bela frase em que diz que “the novel is the affliction for which only the novel is the cure” (o romance é o sofrimento que só o romance cura).

Escritores e maratonistas se levantam, todas as manhãs, para fazer tudo de novo. Passada a fase do “levar jeito pra coisa”, só mesmo insistindo, suando, editando e entregando uma parte de si. Uma parte que fica no treino, no rascunho, na obra, no Ouro Olímpico. Uma parte que vai e que às vezes não volta. E onde o esporte vem cobrar com a saúde do corpo – e a barganha é aceita em troca de grandeza –, a escrita leva uma parte da alma. Topa?

Saudades do Aeroporto da Serrinha

Adoro turbulências durante o voo. O trepidar lembra um ônibus da Cometa e aumenta minhas chances de adormecer a bordo. Já que voar é entediante e incômodo, aceito todas as formas de torná-lo mais interessante. Ali onde uns sentem medo, eu sinto presença de vida. Que venham as turbulências. E em meu histórico aeronáutico, o voo mais interessante que já tomei foi o Paris-Cotonou, no Benim, com escala em Trípoli, na Líbia, pela Afriqiyah Airways. Não pelas turbulências. Os comissários de bordo fumavam ao lado do banheiro, durante o voo, por exemplo. Os passageiros também fumavam, ao desembarque, antes mesmo de deixarmos aquele tubo que conecta a aeronave ao prédio. No Aeroporto Internacional de Cotonou, o desembarque acontece na pista, e as malas são levadas, lado a lado conosco, até o saguão interno, onde são manualmente colocadas sobre a esteira. Um lugar onde ainda sobra espaço para a acomodação e acordo pessoal.

Para entrar no país, o governo do Benim pede um visto e a cartela de vacinação carimbada no campo “febre amarela”, e eu tinha ambos. Mas, que mancada, esqueci a cartela em Paris e avisei ao oficial de saúde que veio pedi-la, vestido com um jaleco branco, semiaberto, sem camiseta por baixo, e com uma máscara de cirurgião em volta do pescoço. Ele me levou até uma salinha e fechou a porta. “Quando vencia a vacina?”, perguntou, sentando-se à mesa vazia. “Ano que vem”, me expliquei, “tomei faz quase dez anos, mas ainda está valendo.” Ele dispensou meu comentário e seguiu com outra pergunta naquele simpático francês com sotaque africano. “Era só contra febre amarela?”. “Era”, respondi. Ele acenou com a cabeça para a cadeira ao lado, onde me sentei, e tirou uma cartela novinha da gaveta. Preencheu-a com os dados do meu passaporte, carimbou-a com o selo oficial do Ministério da Saúde local e me pediu 10 euros. Eu paguei.

Este prólogo foi só pra contextualizar minha memória desse voo e desse aeroporto, porque pensei neles na semana passada quando cheguei em Juiz de Fora, Minas Gerais, de avião. Foi a primeira vez na vida que aterrissei no Aeroporto da Serrinha, ou Francisco Álvares de Assis, até recentemente o único da minha cidade natal. Foi também meu primeiro voo num avião com asas acima das janelas, desses que vemos em filmes com Humphrey Bogart e Audrey Hepburn. Muito estáveis, aliás.  O Aeroporto da Serrinha é uma simpatia. É tão pequeno que faz pouco separaram a área de embarque da de desembarque. Os funcionários do check-in são os mesmo que buscam nossas malas no avião e alguns amigos meus viraram pilotos treinados ali, no aeroclube.

Quando eu era criança, frequentava o restaurante anexo com minha família por causa do parquinho. Isso antes de eu andar num avião na vida. Uma grade móvel, dessas que vemos na frente de palcos de shows em exposições agropecuárias, separava o parquinho da pista de pouso.  E os voos panorâmicos de teco-teco até hoje são uma opção legal para os amigos que visitam pela primeira vez a região, pois de cima vemos o mar de morros que abraça a cidade e se estende ao horizonte. É bonito.

O voo do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, ao Aeroporto da Serrinha foi lindo. Gostei muito. Foi só na manhã seguinte que fiquei sabendo do acidente que matou oito pessoas ali ao lado. Conheço muitas pessoas que vivem na região. Meu próprio avô deixou terrenos de herança aos quatro filhos, dentre eles minha mãe, logo depois do morro, da colina, onde fica a curta pista de pouso do Serrinha. O local é famoso pela serração baixa e pela má visibilidade, e o pequeno avião nem atingiu a pista, caindo dentro da pousada da família de um amigo meu, local que eu frequentei, semanalmente, por algum tempo. Nossa banda, duplodeck, ensaiava ali, num quartinho anexo à pousada, todos os sábados à tarde. Os aviões que passavam rasantes para pousar eram frequentes, e a vibração que provocavam era, por vezes, grande. A quadra de futebol era ponto de encontro dos “caras” da faculdade terças à noite e o caramanchão, a 200m da curta pista e arrancado do chão pelo bimotor acidentado, foi altar de casamentos de amigos.

O acidente me deixou pensando nessas coincidências e nas minhas memórias associadas ao Aeroporto da Serrinha quando decolei, dois dias depois, de volta para São Paulo. É um daqueles lugares onde o “sistemão” do mundo ainda não chegou direito. Existe um elemento orgânico, onde o caso-a-caso ainda impera e que, pensado dentro de nosso cotidiano corporativizado, faz dele um oásis de bom senso, como o voo da Afriqiyah Airways para o Benim. Onde ainda vemos os indivíduos e as exceções cabem na regra.

Lembrei dos amigos pilotos, voos panorâmicos, ensaios ao som de decolagem, parquinho com minha irmã e, sobretudo, na fotografia que tirei ali no meio da pista, aos 7 anos quase completos, ao lado do então candidato à presidência da república, Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 1989. Essa fotografia ainda decora a casa da minha família e a dos pais de uma amiga de infância: nela, nós duas, penduradas no pescoço do ex-presidente. Ela está ao lado de outra, também tirada ali, agora em setembro de 1998, quando nós duas compactuamos com os seguranças do aeroporto e líderes do PT, que tentavam evitar que a multidão de eleitores invadissem o pequeno saguão. Atravessamos a brecha na porta e na vida e nos precipitamos em meio aos flashs dos fotojornalistas, onde empunhamos a foto de 1989, a marca própria da passagem do tempo, e ladeamos o candidato Lula, à espera dos cliques. Demorou mas conseguimos cópias da foto que saiu, enorme, no Estado de Minas.

Quatorze anos depois deste dia, Lula já teve dois mandatos e não é mais presidente; os integrantes da banda que tocava todos os sábados se espalharam por aí e agora se reúnem de vez em quando para brincar num estúdio mais equipado e no mesmo local; o parquinho, acho que não existe mais, embora as grades tenham melhorado; e a foto emoldurada daquela amizade de infância e adolescência fala de uma saudade que não passa.

Têm dias que são assim. De sossego na turbulência.

(Acervo pessoal)

Vamos falar sobre o elefante

Quando me mudei com minha família para o Colorado, em novembro de 1998, meu padastro americano foi antes para encontrar uma casa e uma escola. Em função da necessidade de proximidade entre escolas e endereços, acabou escolhendo a opção mais próxima da Green Mountain High School, onde estudei até julho de 1999. Esta casa eliminou a possibilidade de eu estudar em outra, igualmente boa e do mesmo condado de Jefferson: Columbine High School.

Com as manchetes do absurdo recentemente estampando as capas de revistas e os cabelos vermelhos do “coringa” decorando de longe as bancas de jornais, voltei a pensar no Colorado, em Columbine, em Eric Harris e Dylan Klebold e em Elefante, de Gus Van Sant, um dos filmes de maior beleza plástica que eu já vi. Me fez pensar na minha experiência do inexplicável e da adolescência.

Na minha família, dia 20 de abril é uma data comemorativa. É o aniversário de namoro da minha mãe e do meu padastro, que no ano que vem comemoram 20 anos de união. Foi o dia em que eles se conheceram e se apaixonaram, em um bar em Washington D.C., o célebre (pelo menos lá em casa) Café Lautrec. Em 1993, a data caiu numa terça. Minha mãe não me deixa esquecer. Em 1999, dia 20 de abril também caiu numa terça, e não preciso que ninguém me lembre. Eu tinha 16 anos e fiquei trancada na escola durante o tiroteio em Columbine, a poucos quilômetros dali. Outros adolescentes ao meu redor se calaram, como eu, e olharam a TV, mudos. Muitos choraram. Os professores não tiveram o que dizer. A diretoria nos mandou permanecer na escola até entenderem o que acontecia. Nesse dia, minha mãe foi me buscar, quando as portas foram abertas. Ela nem sabia o que tinha acontecido.

O Colorado é considerado um dos estados mais saudáveis dos Estados Unidos, já foi o mais visitado pelos americanos e Denver é uma cidade de porte médio e mentalidade de cidade pequena. Em português correto, é caipira. Espalhada no altiplano e margeada pelas Montanhas Rochosas, a Mile High City (cidade a uma milha de altitude, em tradução livre) está ao lado de muitas estações de esqui, tem inúmeras atividades esportivas o ano todo – do hóquei ao caiaque – e um clima espetacular quase todos os dias. Tem mais carros que habitantes e um sistema de transportes públicos ineficiente. E muitos adolescentes entediados.

O tédio. Leva à criação artística, à inovação tecnológica, a uma imaginação fértil e a formas de lazer impensadas (como meus amigos de Recreio, no interior de Minas Gerais, que empurravam vacas adormecidas no pasto. Para quem não sabe – como eu não sabia – as vacas dormem de pé). Às vezes leva também a pequenos delitos e a excessos. Matt Stone e Trey Parker, criadores de South Park, lamentaram, em um depoimento no documentário de Michael Moore, Bowling for Columbine, a impotência diante do que houve em Columbine. Este mesmo mundo escolar que, aos 16 anos, é a totalidade do universo, não é, no conjunto da obra, mais que um capítulo. Passa-se a página e recombinam-se as palavras.

Contrário ao fluxo turístico, o Colorado tem uma tradição de evasão. O espaço amplo e as montanhas ao infinito sob o céu estonteantemente azul podem ser um claustro. E escapar vira o objetivo de muitos. É a terra do John Fante, um dos que escapou. Original de Boulder, o filho de imigrantes italianos foi tentar a vida de roteirista em Hollywood. Emigrou das montanhas para o mar e viveu pobremente em Bunker Hill, no centro de Los Angeles, de onde escreveu seu mais famoso livro, Pergunte ao pó. Ele não deu propriamente certo no cinema, mas escreveu livros sobre sua condição de escritor, de miserável, de interiorano na capital. Nesta mesma época, um pequeno Neal Cassidy ia crescendo, na marra, nas ruas da cidade. Ele também deu o fora, é claro, e veio a se tornar célebre pela pluma de Jack Kerouac ao inspirar o personagem Dean Moriarty (ver última coluna A estrada de cada um).

Em Denver, como em toda parte, adolescentes buscam vida nas festas, nas drogas, nos carros em alta velocidade e no sexo. Limites. Excessos. Brincadeiras. The road of excess leads to the palace of wisdom, exalta William Blake (A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria), mas há quem pereça no caminho. As drogas circulavam de forma pouco discreta na minha escola, uma das boas da região. Os tipos que circulavam nessa mesma escola variavam dos grupinhos mais óbvios dos jocks (os atletas), roqueiros, góticos, nerds e intercambistas aos mais solitários, como a garota da minha aula de História, que todos os dias ia vestida de renda branca e longa. “A noiva”.

Me sentia careta nesse ambiente, e às vezes acuada, apesar de ser, eu também, vítima do tédio suburbano num corpo adolescente. Ouvia muita música pesada, tinha momentos de ira, de fantasia escapista, de desejo de revolução. Exorcizei meus demônios praticando muito esporte, lendo famigeradamente e tocando violão e guitarra por horas. Também tirei carteira de motorista e adorava ficar no sol. E aí passou… O tempo. E também as angústias de então. Às vezes, no entanto, a pressa é grande, e ao invés das fissuras, toma-se o abismo. Porque a adolescência grita, não cabe no peito.

O atentado no cinema de Aurora, subúrbio de Denver, também foi num dia 20, só que de julho, e o “coringa”, bestificado, que chegou a seus 24 anos, pode ser condenado à morte.  A maioria de nós vai se esquecer de que foi numa sexta-feira que isso ocorreu, mas o elefante agora já se instalou na sala de estar. Vez por outra, como agora, vamos revisitar o incômodo e ser lembrados, não sem resistência, de que ele não se foi com a condenação do culpado. E parte da vida é aprender a viver em sua companhia.

Cena do filme “Elefante”, de Gus Van Sant
(Palma de Ouro em Cannes, em 2003)

A estrada de cada um

Sexta-feira, 13 de julho, fui à estreia de On the Road (Na estrada), de Walter Salles, no Brasil, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional ali na boca da Av. Paulista. Me antecipei, fiquei ansiosa, comprei ingressos online com lugar marcado bem no meio da sala e convidei amigos com entusiasmo. Para além dos 55 anos decorridos desde o lançamento do livro de Jack Kerouac, em 1957, havia os meus de espera desde que o li pela primeira vez, em 2000, aos 18 anos. Ali peguei carona.

Minhas expectativas eram bem baixas. Não esperava chegar a parte alguma. Com todo o respeito e admiração que tenho por Salles e sua trajetória de filmes de estrada, ainda assim esperava pelo pior. Só que o pior não ocorreu. Nem o melhor. Simplesmente foi. E foi demais. Meu tio uma vez disse que no cinema francês os filmes não acabam, eles só param de passar. Assistimos a um fragmento de vida e pronto. Acabou o filme, mas aquela história continua fora das telas. Foi isso o que eu vi no cinema na sexta. Foi o que eu li no livro há mais de uma década.

E não é assim mesmo que ocorre na nossa vida? Momentos épicos, sem dúvida, permeiam o cotidiano, mas falta o final redentor com música incidental de cordas. A narrativa está sempre em construção até a hora em que cessa. O que dá pra fazer é contar um pedacinho numa coluna como essa, num livro, num diário de viagens, numa obra, numa carta. A vida sempre transborda, não cabe nas linhas, nas páginas e muito menos nas telas. E as obras de calibre são assim: quando falta algo, quando incomoda o buraco, é porque o autor acertou. Dá vontade de ler/ver de novo, ver se algo mais vai se revelar na segunda sentada. E sempre revela, mas nunca conclui.

On the Road corre como uma viagem, com altos e baixos que independem dos aclives e declives, e na maior parte do tempo segue a linha amarela no meio da pista: que não leva a parte alguma e é o único caminho. Cito Lewis Carroll: “If the destination is unknown, any road will take you there” ( Se desconhecemos o destino, qualquer estrada te leva a ele). Adiante, o livro vai. As páginas são passadas encadeadas por uma escrita solta e rítmica que pede cadência. Não há clímax, nem obstáculo definido a ser superado pelo herói. Há um sonho e uma pulsão, de vida e de morte. Como a batida à máquina de Kerouac e sua escrita sem respiro, é errático, de improviso e sem refrão, como o jazz.

Não ouso dizer que o filme de Walter Salles seja tão bom quanto o livro, e tampouco tenho peito para encarar a afirmação de que On the Road seja um livro para todos, universalmente incrível. Ele pode nem ser o melhor de Kerouac, mas é a porta. A primeira viagem. É lento e estranho, e cheio de entranhas na escrita. Li e reli seus livros, como também os de Ginsberg, Burroughs, Cassidy, Ferlinghetti e outros beats. Fiquei obcecada por um tempo. Queria ser parte da patota. Queria aquela liberdade, aquela vontade de viver, aquela sede de experiências e ausência de censura. Queria viver jazz, viajar a América, ler, amar, beber e fumar. Viver poesia.

Fecha o livro. Sobem os créditos. Os beats se foram e aquela estrada, para eles, também chegou ao fim.

Tive um professor durante o mestrado que uma vez disse em sala que se você começa um livro e não consegue ir adiante, ou é porque você não o merece ou porque ele não te merece.  Guardo essas palavras comigo, embora ache sempre muito difícil distinguir quem desmerece quem na hora do rala-e-rola. As viagens também são desta natureza: há quem viaje sem sair do lugar e quem nunca saia do lugar, mesmo percorrendo o mundo.

Eu e On the Road nos cativamos, nos merecemos, e a linha amarela que me guia no centro da pista leva a um destino desconhecido. Cada um tem a estrada que merece e a carona que te leva por ela. É só seguir.

1a edição paperback de On the Road publicada pela Viking Press em 1957