“O que é capitalismo selvagem?”, perguntei ao meu pai, bem pequena. A música dos Titãs tocava na rádio. Os anos 80 eram o presente. A pergunta era interessante. E ele prontamente me apontou os sinais do capitalismo sob sua ótica. Desigualdade social. Pobreza. Inflação. Abracei aquela parte da verdade e na próxima vez em que vi um morador de rua, não hesitei. “Olha, pai! Um capitalismo selvagem!”. A mente de uma criança é uma coisa fabulosa e misteriosa. Crianças olham. Elas veem histórias.
Nessa semana de eleições municipais, pensei na minha associação lúdica e ao mesmo tempo avessa ao universo político-eleitoral. Eu torcia pela esquerda como por um time de futebol. E, ao mesmo tempo, tinha raiva dos homens que passavam a noite lá em casa fumando e discutindo a revolução. Eu os via de relance quando acordava para fazer xixi e ouvia frases soltas como “a quarta internacional”.
Minha tia, que não dava a mínima pra esse universo dos meus pais, confessou ter ficado surpresa em uma reunião secreta do que viria a ser o Partido dos Trabalhadores, no “quartinho” do quintal da casa da minha avó, na época em que todos eles estavam na faculdade. “A revolução é iminente”, ouviu ali dentro. Saiu eletrizada, surpresa com sua ignorância diante de algo grandioso e iminente. Depois perdeu interesse. Não era iminente coisa nenhuma.
Meus pais não. Acreditavam. Viajavam clandestinamente. Reuniam-se. Deliberavam. Pediam a voz. Tomaram uns tapas por aí, foram presos, julgados e liberados. Com meu nascimento, os caminhos políticos começaram a se divergir e, passada a derrota do Lula em 1989, chegou ao fim aquela união político-amorosa. Naquele mesmo ano de 89, a decoração do meu aniversário de 7 anos foi de estrelas do PT. As surpresinhas, broches vermelhos estrelados e adesivos de campanha. Tirei foto com o Lula, mas perdemos a eleição. E meus pais se separaram.
Ainda vi o Lula outras vezes. Meu pai foi presidente do PT em nossa cidade e numa noite dos anos 1990 em que ele devia escoltar o candidato à presidência, não teve dúvidas. Colocou também eu e minha irmã no centro do cortejo de homens de braços dados que descia a rua principal da cidade. Histórias como essa, da minha infância politizada, têm apelo com alguns ouvintes. Sobretudo com os “cabeças-aberta” que nasceram em lares mais “caretas”. Consigo entender. Mas a realidade é que passei mais finais de semana na feijoada ou churrasco pra arrecadar fundos pra campanha do PT do que no clube ou na pracinha.
Conheci várias gestões do PT regional, seus candidatos; depois do sindicato. Havia muito tédio, e também outras crianças desinteressadas por aquilo tudo. Criávamos brincadeiras, metas e desafios, e sempre havia certa competição pra ver quem ia conseguir ir embora primeiro. Às vezes nossos pais se desentendiam numa reunião, e aquela criança sumia do círculo. Na falta circunstancial de companhias infantis, me imiscuía facilmente entre os adultos. Aprendi com eles a sambar e a assoviar com dois dedos na boca. Era um exemplo de “companheira”.
Em 1994, pra provocar, declarei firmemente meu apoio a FHC. Não me deram muita confiança, então abandonei a ideia. Em 1998, já adolescente, tirei outra foto com o Lula, que agora estava bem mais pop e disputado. Saiu no jornal e tudo, mas ele perdeu de novo. Eu estava na flor da idade revolucionária e usava camisas do Che Guevara, ouvia Rage Against the Machine, sonhava em ir a Cuba, desenhava bandeiras dos Estados Unidos de cabeça para baixo na capa do meu caderno da escola, lia livros como “O príncipe” (Maquiavel), “A ilha” (Fernando Morais), “As veias abertas da América Latina” (Eduardo Galeano) e sabia a diferença entre Libelu e Estratégia.
Em 2002, na ressaca daquela euforia, ainda tentei uma terceira foto, mas fui esmagada e meu porta-retratos, estraçalhado pela multidão. Não consegui a foto; abandonei a muvuca e a política. O Lula ganhou. Foi a primeira e última vez que votei para presidente. Desde então, estive fora, viajei, não fiz questão mesmo. Das eleições municipais, só votei em uma. Não é um manifesto. Simplesmente foi assim. Precisei ceder uma parte boa da minha infância em nome de uma causa que não era a minha. Cresci ouvindo como resposta “depois das eleições” ou “depois da greve” ou “depois da campanha salarial”. Me senti injustiçada. Muitas vezes. E não quis que minha vida, a partir do momento em que coubesse a mim decidir, fosse regida por esse calendário, arbitrário a meu ver.
Foi morando na França que fui perceber minha admiração por seu Estado, presente, e sua tradição, de esquerda. Meu respeito pela organização dos sindicatos. Pela sindicalização de toda e qualquer profissão ou ofício. As greves e piquetes, que eu tanto detestava, acabaram mexendo comigo. Como a defesa – no grito – dos direitos dos imigrantes, dos exilados. A paralisação completa da rede ferroviária do país diante da ameaça de sua privatização; dos jovens sem penetração no mercado de trabalho; dos trabalhadores afetados pela mudança na idade de aposentadoria. Me emocionei, algumas vezes, vendo na França um país comprometido.
Pensei no meu pai lá em Minas, microfone na mão, rouco, até hoje defendendo campanhas salariais das escolas municipais no meio da rua. Vi o homem; atrás do pai, do sindicalista. E vi uma história.