A lã da Caxemira

Eu devia ter dito “não” logo na porta. Estrangeiro é educado em demasia. Temos medo de cometer gafes e por isso abanamos a cabeça pra qualquer um. Naturalmente, entramos em algumas roubadas. Eu bem que cruzei com duas americanas saindo da loja de tecidos que tentaram me alertar. Seus olhares sugeriam risadas e me apontavam o tamanho do buraco negro que me envolveria. Me achei mais esperta, pensei: “Não sou igual a elas, não vou cair na desses caras, só quero ver essas echarpes aqui”.

Quanta soberba. Sai de lá 2 horas depois com duas sacolas, um rombo no cartão de crédito, um convite para visitar a Caxemira, uma surra em barganha comercial e a barriga cheia de chá de canela com cardamomo. Nem vi de onde veio a coisa toda, perdi a noção de tempo e espaço. Culpa, ou mérito, de Majeed, um senhor de uns 60 e tantos anos, suponho. Túnica branca. Chéchia na cabeça, pés descalços, pernas cruzadas no chão como um faquir magrelo (redundante, mas necessário), barba branca pendurada abaixo do pescoço. Me recebeu com entusiasmo, doçura firme e sagacidade profissional. Seu olhar sempre no meu.

Pedi pra ver uma pashmina ou caxemira. Echarpes feitas de lã de cabras nativas da região dos Himalaias (Caxemira, Paquistão, Índia). “Existem alguns tipos”, me disse suave, segurando minha mão entre as suas. “As que são de lã normal, vendidas como se fossem caxemira. As que são um combinado de algodão e lã. As de caxemira, feitas na máquina. E as de caxemira, feitas a mão”. A fixação de seu olhar me tiranizava. A última opção era a melhor, evidentemente. A diferença de preço reforçava. Olhei pra todas elas, penduradas no meu braço. E esse senhor magrinho e de pés limpos me levou pela pequena loja de piso de carpete, mãos dadas.

Sentamo-nos ao chão com as caxemiras com bordados feitos a mão, cada uma mais maravilhosa e cara que a outra. Pilhas, montes delas. As melhores dentro de malas. Eu as olhava; ele me encarava. Atentamente. Se eu tocava ou se só olhava. Se sorria. Se não mudava de expressão. Se falava com ele da beleza da peça ou se a sentia em silêncio. Se dispensava-a ou se passava a superfície da echarpe contra a pele. A cada uma dessas pequenas pausas estéticas e sensórias, ele dava comandos em hindi ou dialeto de caxemira, sinceramente não sei, aos dois assistentes. Dois rapazes de 20 e poucos anos, vindos do norte da Índia. Camisas xadrez idênticas, como as calças jeans, e os cortes de cabelo mod. Cabelos bem lisos e cheios.

Eles obedeciam os comandos, ditos com autoridade, sem hesitar. Traziam uma nova pilha de echarpes. Dobravam tapetes. Desciam chá de canela com cardamomo, o lubrificante social de Majeed. Quando a negociação empacava, ele mandava descer mais chá. Primeiro sem açúcar. Depois com. Me olhava beber o chá. Me cortejando ou me drogando, e eu aceitando a isca, consciente do truque, mas encantada com o mágico. Com sua destreza com palavras e gestos, estrategicamente dispensados. Majeed é um mestre das paixões humanas.

Depois de uma busca conduzida e assistida por ele, de muito perto, escolhi 5. Não seria possível. Ele não aceitava que eu não levasse a caxemira dourada, a que pertencia a mim neste mundo. Eu concordei em hipnose; também não podia aceitar. Bota na conta. Quem dá mais? Eu dou menos. Toma lá, dá cá, bebe chá, um aperto de mão final e um forte tapa nas costas. Chegamos a um acordo.

Aliviada, queria sair dali o mais rápido possível. Embarquei na aventura cultural por vontade própria e mais por interesse antropológico que comercial, mas uma hora basta. Ele fechou as contas, embalou as echarpes e eu fiquei de bobeira olhando a loja. Eram muitos os tapetes. E as honrarias, os quadros que contam de prêmios de excelência, fotos de celebridades. Nelas, o mesmo aperto de mão. O pacto selado. Mais uma vítima indefesa do Mago Majeed.

E então vacilei. Em um momento de distração. Coisa de amadora; ele nunca parou de me olhar. Passei perto de um tapete e acariciei sua superfície. Majeed começou a desenrolar tapetes no chão, um atrás do outro, como línguas de lã. “Eu tenho que te ensinar como fazer o teste de qualidade de um tapete genuíno da Caxemira”, disse com um sorriso esperto. “Sem compromisso, não há pressão, você não tem que comprar nada”, sussurrou em confidência. Seu inglês é o mais eloquente que encontrei na Índia. “A qualidade é inquestionável, é um tapete para toda a vida. Minha família os faz há gerações. Sou da Caxemira. Quando você vai embora? Da próxima vez, vou te levar comigo lá, eu te levo no meu carro. É o paraíso na terra, a região mais linda de toda a Índia. Eu moro em Delhi, temos loja aqui no Hyatt, também no Sheraton, e um grande estoque. Vamos visita-lo amanhã? Que horas você pode?”

Fiquei zonza com tantas perguntas. Olhei pra baixo e ri baixinho. De improviso, ele seguiu meu olhar e passou a me mostrar a contagem de fios abaixo dos meus pés também descalços. Um repentista social. Nada escaparia a sua estratégia de venda. Com pânico e admiração, desenvolvi por ele, até o final da tarde, respeito sincero.

Com as echarpes já ensacadas, passamos então aos tapetes. São três as etapas de avaliação de qualidade. Primeiro. Na parte de trás, lá no meio, arranque um fiapo com uma agulha. A seda de verdade e costurada a mão solta fiapos curtos. A falsa, ou misturada, e feita a máquina, solta fiapos inteiriços. Na sequência, queime o fiapo. Se tiver cheiro de cabelo ou pena de galinha queimada, é seda. Se tiver cheiro de papel, é sintético. Não é piromancia, é uma espécie de selo ISO 9004.

Segundo. Teste para saber se a franjinha nas pontas do tapete são de seda inteiriça – se elas atravessam o tapete até as pontas – ou se foram simplesmente costuradas ali na beirola para parecerem verdadeiras, minimizando o valor do metro quadrado e aparentando sofisticação. No verso, mais uma vez, perto das bordas, levante um fio com uma agulha e balance de um lado para o outro, afrouxando o fio teso. Se ele for se soltando dos dois lados sem arrebentar, é porque atravessa o tapete. Senão, só está na ponta, e vai arrebentar assim que você perfurá-lo. Mais uma vez, batata. O cara conhece seu ofício. E por fim, pegue uma pequena lupa dessas de observar negativos de filme. A janelinha deve ter 2,5cm. Com ela, conte os fios. E verifique o que está indicado no rótulo atrás do produto. Se são 18, 24, 30 ou 50 fios. E bata o martelo.

Majeed é o melhor vendedor com o qual já cruzei na vida. Um Don Juan da tapeçaria. E eu sou uma péssima negociadora. Está claro que ele me convenceu a levar o tapete do qual eu não precisava, mais as 6 caxemiras. Fiquei buscando razões pra justificar aquela compra maluca, e achei umas duas, pra legitimizar o surto. Majeed parecia satisfeito, mas nem de longe eufórico. É seu trabalho, o que ele faz todos os dias. Cada cliente é um novo coração a ser lido e desvendado. Com botõezinhos diferentes a serem apertados. Tomamos outro chá pra pensar nos descontos. Consegui tirar um bocado do total, mas ainda assim paguei mais do que valia, suponho. Será que quando sabemos da trapaça e consentimos com ela somos menos bobos ou isso é desculpa de peidorreiro?

O pagamento virou outro problema. Não passava o valor todo no meu cartão, não em dólares. Pensei em fugir, abandonar aquilo tudo. Sem meu consentimento, ele passou tudo que pôde no cartão, e o que sobrou foi o valor do tapete. Senti alívio; talvez conseguisse escapar só com as caxemiras. Já estava meio arrependida daquele circo. Propus voltar depois pra pegar o tapete. Claro que não colou. Da soberba à ingenuidade: a cliente perfeita. Majeed calçou os sapatos, pegou minha mão e me levou pra fora do hotel, pela rua, por uma escada, entre carros, um pátio, uma galeria, um restaurante, até um banco. “Aqui você pode sacar”.

O caixa estava fora de serviço. Outra chance de fugir correndo. Mas e as caxemiras que tinham ficado na loja e pelas quais eu já tinha pago? Ele obviamente não se dissuadiu com o pequeno percalço, que na Índia chama-se cotidiano. Me levou dentro do banco, conversou com a atendente, que nos mandou esperar um pouco. Esperamos 10, 15 minutos. E nada aconteceu. Saímos em busca de outro caixa eletrônico. Ele ia pedindo informação com a mesma autoridade e desenvoltura, lá fora, que demonstrava dentro de sua loja. Saquei o dinheiro e voltamos pelo mesmo trajeto tortuoso e fabuloso até a entrada lateral do hotel. Paguei o resto.

Enfiei os pés descalços nas havaianas e peguei minhas sacolas. Ele me entregou um folder da Caxemira com seu telefone anotado. Olhar sem vacilo. Me mostrou, num álbum de fotos, Bill Clinton comprando com ele, apertando sua mão. “Você vai comigo no meu estoque”, afirmou, mais uma vez com minha mão entre as suas.“É lindo. Tomaremos chá. Sem pressão, você não precisa comprar nada. Chegando lá pode se convencer do contrário, mas…”. Interrompi-o. Seus assistentes riram alto. Eles vinham rindo o tempo todo pelos cantos. De mim e da situação toda. Majeed também riu. Todos rimos. “Eu não compro mais nada!”, conclui. Mas prometi voltar no dia seguinte para o chá.

Mercado

Mercado Municipal de São Paulo, dupla exposição, 2011, by Maria Bitarello

 

Diga-me com quem, em que e que horas andas em Los Angeles (2008)

Ford Impala @ Topanga Canyon
(by Fábio Nascimento)

Uma vez vi o sociólogo Roberto da Matta falando sobre a sociologia por trás do comportamento dos motoristas. Ele falava da nossa agressividade no volante, do sentimento de poder dentro daquela máquina blindada, de como só brasileiro mesmo que acelera o carro quando vê um sinal amarelo e um pedestre ameaçando pisar a faixa listrada. Achei a analogia muito boa e, quando saí dali, passei imediatamente a reparar no meu comportamento, e no dos demais, quando dentro de nossos veículos. E isso ficou comigo.

Agora vivo em Los Angeles, onde as leis de trânsito são semelhantes, mas o pathos por trás da analogia de Roberto da Matta é completamente diferente. Diga-me com quem andas que eu te direi quem és, assim segue o ditado. Em dialeto “angeleno” (o habitante de Los Angeles), adaptamos para diga-me em que andas que eu te direi quem és. Em pouco tempo aqui, me lembrei também da observação do personagem interpretado por Don Cheadle do filme “Crash”, de Paul Haggis e vencedor do Oscar, sobre o transporte público: os ônibus, à noite, andam com as luzes internas acesas, segundo o cara do filme, para humilhar quem anda dentro e expor o negro, o latino, o imigrante, o pobre, a mulher, a minoria.

Na época, embora conhecesse bem a segregação racial nos Estados Unidos, achei curioso. Os países europeus se orgulham de seus sistemas de transportes públicos. Não ter um carro em Londres ou Paris não é uma vergonha, é um luxo. Significa que você vive em uma cidade onde o serviço de transportes tem qualidade, segurança e cobertura. Você não se preocupa com seguro do carro, estacionamento, dirigir embriagado, manutenção – que libertação. O Brasil se diz apaixonado por carros, mas também tem seu pé europeu: na hora de alugar um imóvel, pesa muito a distância da estação de metrô ou do ponto de ônibus.

À exceção de Nova York, os Estados Unidos são uma terra de carros. A cultura automobilística é fortíssima. Mas nunca havia visto nada parecido com Los Angeles. Para começar, o metrô é uma piada, pior que o do Rio antes de ser expandido. E Los Angeles, me permito a comparação, é tipo Brasília. Um lugar visivelmente diferente do resto do país e que divide as opiniões com veemência: os que amam e os que detestam. E os carros têm papel importantíssimo nessas reações.

Com freqüência os amigos do Brasil me perguntam se moro perto da praia. Normal, afinal faz parte do imaginário da cidade das estrelas: Malibu, “Garota eu vou para a Califórnia”, e por aí vai. Respondo com dúvida. Em termos brasileiros, estou longe, pelo menos 20 minutos de carro (sem trânsito), nem sei calcular a que distância a pé. Em escala americana/angelena, vivo à beira mar. Para entender, olhe um mapa da área metropolitana da cidade e veja sua extensão. Uma linha imaginária divide a cidade em Leste e Oeste, assunto para outra coluna, e como habitante do Oeste, sou, para eles, da praia.

Os 20 minutos a que me referi acima são muito interessantes. Por aqui ouvimos muito que quaisquer dois pontos de Los Angeles estão a 20 minutos de distância entre si (sem trânsito). O que é verdade, pois com as super freeways construídas sobre a cidade, você potencialmente voaria de uma extremidade à outra. Mas a gente sempre coloca essa informação no final, sem trânsito entre parêntesis, como se ela fosse um detalhe. Até parece. É a regra, praticamente um toque de recolher! Com ou sem previsão, esses 20 minutos podem virar duas horas e definem mais seu comportamento aqui do que seu dinheiro, sua raça, sua classe social. Pobres e ricos, Britney Spears, Angelina Jolie e eu, somos todas reféns do trânsito. Diga-me a que horas andas que eu te direi quem és. Por que acha que Lindsay Lohan só é pega de madrugada voando acima do limite de velocidade em sua caminhonete? Voar de dia, só de avião ou helicóptero.

Algumas dessas dicas são leis. Idas ao cinema são marcadas com semanas de antecedência, nunca sai-se de casa sem uma breve pesquisa no Google Maps se você não tiver um GPS, só para ter certeza de que sabemos onde vamos e de que se chega a algum lugar naquela hora, e nunca programe mais de uma coisa no mesmo dia. Das 6h às 9h, engarrafamento. Sem dúvida, em todas as direções. Uma breve janela de horinhas nos deixa vislumbrar como seria lindo se o fluxo de carros fosse 15 vezes menor. Às 14h, 14h30, complica de novo. Daí vai até umas 19h. Sexta-feira: trânsito o dia inteiro, ainda não entendi porque. Sábado e Domingo, formigueiro humano no sentido da praia e um maravilhoso deserto no restante.

Já dizia Caetano que cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Uma conhecida uma vez me apontou que o maior orgulho do angeleno é a Interstate 405, a San Diego Freeway, que corta a cidade de Norte a Sul, perto do mar. Muitas outras cortam a cidade além da 405: a 10 (Santa Monica), a 110 (Harbor), a 101 (Hollywood), para citar as mais centrais. São a padaria da esquina. As vemos todos os dias, são nossas referências e as apontamos com orgulho ao visitante: “olha a 405!”. Encucado, com certeza, o coitado se pergunta “e daí?”. Eu também me fazia essa pergunta quando cheguei aqui, mas, lentamente, sem me dar conta, a 405 foi virando para mim o que é para eles: nossa maior dor e estranhamente nossa secreta delícia. Nesta terra de bens descartáveis e de beleza arquitetônica escondida, as freeways são o maior símbolo da vontade humana que transformou um deserto sem rios em cidade. Mais que a praia ou Hollywood, o angelino se orgulha de suas estradas. E só o tempo ajuda a entender.

De céus e discos voadores… (nov.2008)

“London, London” é uma das minhas músicas favoritas. Caetano a escreveu do exílio e, no refrão, confessa: “while my eyes go looking for flying saucers in the sky”. Nunca havia me perguntado se meu apreço por essa música teria relação com essa frase, mas suspeito que sim. Sou super fã de céus. Céus, no plural, pois existe mais de um. Pode me perguntar que lembro do céu de quase todos os lugares por onde já passei: terei quase sempre alguma observação sobre a tampa azul ou cinza daquele ponto do planeta.

Não sei ao certo quando começou isso. Teria que perguntar a meus pais. Mas, definitivamente, Los Angeles foi um marco. Quando da minha primeira vez nesta cidade, não pude me conter. Estava transbordando de céu. De azul. Onde já se viu uma capital com milhões e milhões de pessoas onde o horizonte é vasto e tridimensional? Me encantei. Existe uma explicação razoável. LA é terra de terremotos. A área aqui é vasta, como o céu, por culpa das construções que, salvo raras exceções (como Downtown, Westwood e Century City), são baixas, com até três andares. Um suplício para o deslocamento sem metro, mas um elixir para os olhos.

O prazer começa cedo. Na beirada do mundo ocidental, o sul da Califórnia tem uma incidência solar elevadíssima (eu diria que tem mais de 300 dias de sol absoluto por ano, baseado em minha experiência aqui), e o dia começa bem cedo. O Sol da manhã, embora não seja meu favorito, é uma característica não só marcante, mas apaixonante da cidade. Ficamos todos viciados nessa fotossíntese perene. Confesso que não é dos melhores cenários para quem precisa trabalhar. Da janela do escritório, aquele azul sem falhas, sem nuvens, sem diferença de tonalidades: simplesmente azul. Da cadeira diante do computador, você pede para estar fazendo qualquer outra coisa que estar ali sentado, ao menos ir lá fora absorver um pouco daquela vitamina que vem com os raios ultravioletas.

Muita gente de outras partes do país acha os angelenos muito praianos, pouco atrelados ao trabalho. De minha perspectiva, sempre vou achá-los trabalhadores, inclusive por causa do tempo maravilhoso, ao qual a maioria resiste bravamente. LA é também terra de esportes. E o melhor de tudo: sem suor, pois a umidade relativa do ar daqui faz de Brasília uma sauna amazônica. Não cai uma gota por aqui desde fevereiro. Juro. Por isso mesmo, tem sempre um correndo, jogando um freesbee, passeando com o cachorro ou simplesmente deitado na grama, absorvendo energia solar. Esta história da umidade, aliás, dizem que tem a ver com a qualidade do céu.

No Griffith Observatory, um prédio lindo da década de 30 onde funciona o observatório celeste daqui, ouvi dizer que a ausência de bolsões de umidade e também de nuvens deixa a observação dos astros mais clara. Realmente, LA não tem condensação, e o ar fica mais fino, atrapalhando a visão somente a poluição amarelada que se deposita entre o céu e a Terra, lá na linha do horizonte, emoldurando esta obra de arte. “Céu de Brasília/Traço do arquiteto”, não é o que canta Djavan? Outro dia, de passagem pelo observatório em uma noite especialmente quente, um pôr-do-sol especialmente especial deixou quem lá esteve boquiaberto. As luzes da cidade, a poluição, o contorno de Hollywood Hills contra a parte baixa do céu onde ainda havia uma luz avermelhada, o degradé lilás que introduz o azul, e onde víamos, a olho nu, Vênus, agraciando-nos com sua presença. Foi lindo.

O pôr-do-sol e a noite são meus horários favoritos. Primeiramente, o Sol se põe no mar. Isso, em si, já é singular e cinematográfico. Em segundo lugar, neste momento, se você dá as costas ao Oceano Pacífico e se vira para a costa, a vegetação rara das colinas em processo de dunificação revela porções arenosas onde o Sol, incidindo diretamente, brilha como ouro. Não estou exagerando. Se estiver longe do mar, tudo bem também. O contorno das colinas no horizonte em escurecimento são tão notórios daqui que ilustram a abertura da 20th Century Fox, já repararam? Outro dia mesmo vi a lua em formato DreamWorks, minguante, na altura das folhas de uma palmeira, que por sua vez parecia apoiada no alto da rua que subia. Câmeras não conseguem registrar essas belezas. Quando vira noite então, o momento é ainda mais efêmero e fugidio. O melhor céu de LA.

Não é preto, escuro, como reparo ser na maioria dos lugares do Brasil (mesmo em noite de lua cheia). Também não é como os que vi recentemente no interior da França (nem por isso menos belos), onde a luz da Lua parece uma anunciação divina que se recusa a esconder-se por trás das nuvens e que está vindo levar a todos nós. Não é assim. É claro, muito claro. Quase de dia. É meio lilás. Independente da Lua. Nem sempre vemos estrelas, mas sempre vemos muitos aviões, descendo num balé espiralizado, aguardando o momento de tocar a pista do LAX (Los Angeles International Airport). Cartão postal. Do alto das freeways, em uma cidade horizontalizada, estamos de repente como que no alto de um farol, e de lá temos visão privilegiada das palmeiras – tantas – que se impõem acima dos telhados. Suas silhuetas mais bem-definidas à noite que de dia, deixando seu traçado no céu claro e uniforme.

E tem sempre os céus de incêndio, que nesta época do ano pipocam em momentos diferentes. Meio sádico isso da minha parte, mas adoro o céu em temporada de incêndios, mesmo sabendo que vários estão perdendo suas casas e que a temperatura chega a manter-se acima dos 30 graus celsius mesmo depois das 22h. Compreendo, também, que tudo isso que descrevo são paisagens extremamente urbanas – aviões aterrissando, etc. – e que talvez pareça uma louca sem padrão estético que esta há tanto tempo sem ir ao campo que já se esqueceu do que é o céu do interior. Não é isso. Adoro o céu rural também, mas considero na verdade uma aptidão que desenvolvi: encontrar beleza no concreto, no urbano, no cotidiano. Tente você também.

Até vir para Los Angeles, sempre achei um exagero essa história de escolher onde viver a partir do clima. Para quem já morou na neve de Denver, no vento de Washington D.C. ou no reino de Mordor de Juiz de Fora, onde a nuvem cinza é perene, isso tudo me parecia frescura demais. Mas existe a razão histórica do desenvolvimento dessa cidade que não me deixa mentir. Até a vinda dos estúdios de cinema para a Califórnia, na década de 20, Los Angeles era mais uma parte de um enorme deserto mexicano. Os estúdios, por sua vez, vieram por causa do clima. Porque não chove. Porque é sempre perfeito para filmar. Porque é lindo. Porque milhões de pessoas também se convenceram. Eu mudei. O céu me mudou.

Desconfio que quem não presta atenção no céu não anda nada bem. É grande demais para passar despercebido. É só se distrair um pouco do próprio umbigo. Não perdôo nem mesmo os habitantes de São Paulo, onde até os pequenos quadriláteros de nuvem visíveis escondem instantes de epifania estética. Mas é verdade que poucas vezes encontrei pela vida quem me acompanhasse nesse esporte e paixão de observar o céu. O primeiro foi o amigo mais jovem que tenho. Com quase 23 anos de diferença, descobrimos que sem um repertório comum (eu falava português e ele uma língua solitária de balbucias silábicas) o jeito era olhar a Lua. Ao me ver, logo estendia a mãozinha em direção à janela, e lá ficávamos.

Só encontrei mais uma pessoa assim, agora da mesma geração. Por telefone, me perguntava como estava a Lua 500km ao sul, distancia que nos separava. Alma gêmea. Há, portanto, além de Caetano e mim, ao menos mais duas pessoas “looking for flying saucers in the sky”. Mando aviso quando os encontrar.

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LA sky (by Fábio Nascimento)