A consciência branca

Leis demarcam uma conquista. Reinados e impérios, quando ocupam um território, primeiro deixam soldados guarnecendo a fronteira. Depois distribuem as terras para serem ocupadas por seus súditos, a exemplo do que fez Portugal com suas Capitanias Hereditárias no Brasil. Em seguida, constroem templos, marcos, castelos, delineiam uma história da ocupação e criam uma narrativa de fundação. Como os espanhóis e suas catedrais erguidas sobre os templos Incas no Peru. Como os founding fathers nos EUA.

Leis são territorializações. Nos libertam de tomar decisões novas a cada situação. São uma forma de aglomerar um, dois, três casos ou mais e dizer: aqui, nestes casos, faremos sempre dessa forma. Não precisa, a cada vez, chegar num cruzamento e decidir se vai ou não vai atravessar a rua. O sinal está fechado. Haverá, de certo, infrações, o que não elimina a regra. E haverá melhorias a serem feitas, ad aeternum. O sinal amarelo, por exemplo, foi uma delas. A faixa de pedestres.

A partir do momento em que é legislada, a lei já está datada e precisa ser aprimorada. É resultado de tanto tempo de deliberação, maturação, aprovação e aplicação que é inevitável que esteja velha no momento do nascimento. Mas não é, por isso, menos importante. Sem ela não haveria essa delimitação: chegamos até aqui. É onde se troca o bastão. E dispara adiante o novo corredor, para os próximos 100m do revezamento.

O filósofo alemão Immanuel Kant tem um texto muito bonito sobre o iluminismo, ou melhor, sobre a ilustração. Ele explica que se uma grande ideia não é legislada ela não passa de uma epifania. Somente dentro de um sistema em que se possa aplicá-la a um grupo maior que o indivíduo que a elaborou ela se estrutura como iluminação. E, em seguida, é preciso que seja aceita e respeitada pelo grupo. O Estado é um tipo de grupo. Não matarás, por exemplo. É preciso que a lei valha para todos e que todos corroborem o sistema que a faz valer. Só assim é uma lei. E é de todos. E aquela epifania de um indivíduo se configura numa ilustração. Num avanço.

Em 20 de novembro, comemoramos o Dia da Consciência Negra. Abundam por aí comentários obtusos sobre as cotas. O mesmo vale para as leis que exigem respeito aos homossexuais. Num grupo pequeno há espaço para diálogo, para acomodação de todos, para o caso a caso. Digamos, na sua família, vocês podem aplicar um sistema próprio de aceitação e negociação das diferenças. Mas uma cidade é muito grande; um país tem mais gente ainda; e o mundo está lotado. Não é possível contar apenas com o bom senso. Então criamos leis. Para desenhar uma linha  no chão.

Se você é homofóbico e/ou racista, verá a lei como entrave. Se é gay e/ou negro, como garantia. E, convenhamos, estabelecer algo básico como “desrespeitar alguém por diferença racial ou prática sexual é crime” não deveria gerar tanta polêmica assim. É muito primário. É respeito à vida do outro. Seus pais deveriam ter te ensinado isso em casa. Você e eu merecemos ser respeitados por nossas escolhas e práticas, e a lei vai assegurar que não sejamos demitidos, agredidos ou alienados por nossa raça, prática sexual ou gênero. Ainda assim, vão dizer por aí que cotas geram racismo. Que dão vagas dos melhores alunos aos piores alunos.

Opiniões como esta só escancaram, em alto e claríssimo som, a necessidade da lei. Racismo já existe, pessoal, ninguém está inventando isso agora. A escravidão aconteceu, não é um boato. As cotas são um passo a frente. E porque a lei é falha e sempre em construção, é preciso saber pressionar por seus avanços. Porque se ela exclui, por exemplo, os brancos de baixa renda e não elimina a urgência de se fortalecer o ensino público brasileiro, lembremo-nos que conquistas são lentas e trabalhosas. E os buracos não podem invalidar todos os acertos.

Os brancos não são maioria no mundo, como nunca o foram entre seus escravos. Mas seguem sendo os donos da bola. Donos do dinheiro. Do trono, do poder. Muitos (muitos mesmo) descendentes deste homem branco sui generis, no entanto, olham as grandes guerras na Europa e não vêm, ali, o cântico do seu povo, o cordel de sua terra. Não se vêm na escravidão. Não reconhecem sua pegada no genocídio indígena. Acham que racismo não é crime e se esquecem que muita coisa terrível nesse mundo foi feita por seu clã. E só lembrando podemos ensinar e aprender.

Não proponho, aqui, martírio nem cinismo, só consciência. De que somos brancos. Do que é ser branco. De nossa herança. Para conseguirmos nos enxergar na escravidão. Para vermos o chicote na própria mão. E para não nos esquecermos de que todo homem branco é culpado.

Um dia foi abolida a escravidão. Um dia as mulheres puderam votar. Só depois vieram, ambos, a trabalhar com os brancos e com os homens. Estão se tornando chefes. Agora podem casar-se com quem quiserem. O aborto ainda não é legal na maior parte do mundo, nem o casamento gay, e os negros ainda não têm igualdade de tratamento e direitos. Ainda tem gente que acha que homossexualidade é um defeito de fábrica; que negros e mulheres são intelectualmente inferiores. Pergunto: isso invalida as leis Áurea, do Sufrágio Universal e Rosa, lá atrás, o primeiro de tantos passos? Adiante, pessoal, adiante. Estamos escrevendo uma história nova. Passemos o bastão para frente.

Homem invisível, Posto 9, Rio de Janeiro, by Maria Bitarello

A cura pelo próprio mal

De todas as modalidades esportivas em competição olímpica, apenas duas vêm do que eu chamaria de um instinto primário, derivações de duas ações ancestrais, presentes em todas as culturas e de motivação inquestionável para a sobrevivência: correr e lutar. Nem todas as comunidades primitivas viviam perto d’água para desenvolverem a natação ou utilizavam o arco para caçar, mas nunca ouvi falar de um povo que não corresse – atrás de uma presa ou para não o ser ele próprio presa de outra espécie – ou lutasse – para se defender, para conquistar, para seduzir, para oprimir. E os esportes contemporâneos que derivam desses dois gestos primitivos – como o boxe e o atletismo – têm supremacia negra: os negros são, aí, mais presentes e mais bem-sucedidos.

São nessas modalidades que a técnica de treinamento é posterior ao ato primeiro. Correr é instintivo, fez muita gente sobreviver nesse mundo. E reagir a um inimigo também. Luvas, sapatilhas, ringues e pistas são adereços secundários. Mesmo nós, que não somos atletas profissionais, já corremos e ainda correremos. E muitos, mas não todos, já bateram em alguém. O resto já desejou. É o gesto que vem das vísceras. E é justo aí que reside a soberania dos africanos e afrodescendentes. No físico. E se o esporte só pedisse nosso corpo, eu acredito que a seleção natural da espécie eliminaria, gradualmente, os brancos das competições. Sabemos, contudo, que não é o caso. O psicológico no esporte é uma parte tão grande do treinamento que não dá pra nos contentarmos com o argumento étnico ou nacional. A China não nos mostrou que nem os Estados Unidos são imbatíveis? O que sobra, para além das pernas, braços, pulmões e um bom treinamento, é o caráter.

E o caráter é distribuído de forma aleatória e democrática entre os povos. A verdade é que não são muitos o que são bem equipados na cabeça e no coração para lidar com o esporte profissional. Os que ainda conseguem o corte olímpico descobrem lá, na Atenas da vez, não terem estômago para o pódio. Amarelam. A maioria nem vai. E nessa peneira das mais estreitas – uma vez deixados de lado os adereços –, um branco, um asiático, um indígena e um árabe têm as mesmas chances que um negro de atingir grandeza naquilo que fazem. E como é que o fazem?

Acredito que grande parte do sucesso repouse no doce equilíbrio entre autoconfiança e humildade. É, eu sei que é dureza de alcançar, e mais ainda de sustentar. Nessas horas, os primeiros atletas que me vêm à mente são os maratonistas e os tenistas, etnias à parte. A solidão e a tenacidade destes dois atletas é real. Competições de horas em que ambos estão sempre sozinhos, presos em um corpo que grita e queima antes de atingir a dormência. Sempre arriscando uma diminuição na marcha ou na concentração porque os pensamentos tortuosos que podem os levar rapidamente ao fracasso espreitam a cada devaneio, seja pela soberba, seja pela covardia. E não há uma segunda chance.

Admiro bastante os atletas dotados desta rara capacidade de medir e calcular o presente e, a partir dele, dosar, para distribuir com moderação, a energia que resta nos corpos. E nas mentes. Não saltar nos braços da glória na metade da partida nem aceitar a derrota da vontade a meia-maratona. Dosar até a hora de soltar, a hora de chorar. Porque eles passam à beira de uma forma de loucura, e creio que nem saibam bem como fazem para regressar.

Os Jogos Olímpicos há alguns anos me aprisionam no sofá neste período de júbilo sazonal e suas imagens são as que mais me emocionam – não é algo do qual me orgulhe, acho até um pouco patético. Relaxo, com eles, na hora do gozo. O gozo que eles não tiveram muitas outras vezes em anos de preparação, disciplina, dor, alternância entre lesão e recuperação e abdicação quase total de outros tantos gozos de vida: comer, beber, sentir preguiça, procrastinar.

O espírito olímpico me fez voltar às memórias do escritor japonês Haruki Murakami, autor de um número considerável de romances de econômica beleza surrealista. “Do que eu falo quando eu falo de corrida” é uma espécie de autobiografia breve em que ele nos conta suas percepções da corrida e da escrita, hábitos do teimoso. Maratonista há mais de 30 anos, ele, que hoje já passou dos 60, faz paralelos entre as duas práticas que norteiam sua vida: da constância de ambas, do sofrimento prolongado, compensado pelo momento da chegada, e do desejo de isolamento de seus praticantes.

Pensei nele porque não sei de um povo que não conte histórias. Contar histórias é um ato primário dos homens. Escrever é artifício, uma derivação deste instinto, e a técnica vem ajudar na preservação e perpetuação da memória. Em muitas partes do mundo, até hoje, é ao redor do ancião que o conhecimento é passado. Oralmente, por cânticos, sem livros. O papel e o lápis são os adereços secundários que vieram em auxílio do contador de histórias. Depois deles, tudo é terciário.

Conheço alguns escritores, e muita gente que escreve, e a maioria confessa não gostar tanto de escrever quanto de ter escrito. Na escrita e na maratona, existem mais razões para se abandonar do que para prosseguir. Em ambas, os pensamentos de autoadulação e de autocrítica são igualmente nocivos, e as certezas só aparecem em breves janelas de lucidez. No percurso, há mais sofrimento que prazer e mais medo que coragem. Mas sempre vi a coragem como o impulso que nos leva a atravessar o medo, não a negá-lo. A autora Joyce Carol Oates tem uma bela frase em que diz que “the novel is the affliction for which only the novel is the cure” (o romance é o sofrimento que só o romance cura).

Escritores e maratonistas se levantam, todas as manhãs, para fazer tudo de novo. Passada a fase do “levar jeito pra coisa”, só mesmo insistindo, suando, editando e entregando uma parte de si. Uma parte que fica no treino, no rascunho, na obra, no Ouro Olímpico. Uma parte que vai e que às vezes não volta. E onde o esporte vem cobrar com a saúde do corpo – e a barganha é aceita em troca de grandeza –, a escrita leva uma parte da alma. Topa?