É sempre hoje

Robert Pirsig abre o posfácio da edição que eu tenho do livro “Zen e a arte de manutenção de motocicletas” contando que, na Grécia Antiga, a noção de tempo era a inversa da que conhecemos hoje no Ocidente. Ou seja, caminha-se para o futuro de costas, pois o futuro é desconhecido. E o passado está à nossa frente, aquilo que podemos ver. Não sei você, mas eu acho essa percepção do tempo bem mais fidedigna ao que experimentamos empiricamente na vida do que a ideia de que o futuro está adiante e o passado, atrás. Do passado sabemos – ao menos uma parte –, embora a memória seja uma faculdade criativa sempre em construção, alterando sem cessar nossa percepção do que passou. E o futuro, quem sabe dele?

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O presente do amanhã

No último final de semana, descobri um hóspede indesejado na minha casa. Um rato, grande, embaixo do tanque de lavar roupas, me deixou uma noite em claro, à espera da manhã e de alguém, um herói. Meu zelador, Roni Von, veio matá-lo, tirá-lo do meu presente. Vi seu corpo morto, cabeça aberta, o sangue. Mas, ainda mais vezes, vi seu corpo vivo, esguio e veloz, sua cauda subindo pela parede. Nosso brevíssimo encontro revivido, incessantemente, na minha cabeça. É minha fantasia dos fatos em plena atividade, distendendo a tormenta no tempo. Espremendo o presente fugaz ali entre o passado, traumatizado, e o futuro, antecipado, lá onde habitam outros ratos que poderei encontrar, que poderão entrar na minha casa, expor a fragilidade do meu abrigo, de mim mesma. O magnífico mundo das possibilidades, do medo sem nome, da antecipação do pior que nunca vem, ou que vem disfarçado.

É o quarto 101. O maior vilão de todos os tempos. O aposento para onde caminha a narrativa de “1984”, de George Orwell. Lá mora nosso maior medo, nossa fobia, nossa forma de tortura singular e customizada. Winston Smith, o protagonista solitário da ficção-científica, escrita em 1948, desce o corredor a caminho de sua loucura. Nem ele poderia conceber, contra si, sadismo tão perverso. Tampouco sabia o tamanho de sua repulsa. A ratos. Uma repulsa bem maior que a minha, com certeza. Até domingo, eu não pensava neles. Não particularmente. Mas a vida é cheia dessas coincidências, e dois dias antes eu havia visto “Cosmópolis”, de David Cronenberg, no cinema.

A ficção se passa em uma Manhattan alegórica da übermetrópole, um cenário de pré-apocalipse. E o filme abre com uma citação sobre roedores: “Um rato tornou-se a unidade monetária”. O fim dos tempos de usurpação. Manifestantes parodiam Occupy Wall Street e invadem restaurantes segurando ratos mortos pela cauda, protestando contra o futuro. “Eles querem adiar o futuro”, é o que explica a Chefe de Teoria do protagonista, “porque ele tomou conta do presente. Quanto mais inovadora uma ideia, mais pessoas ela deixa pra trás”. Cronenberg sugere que o colapso financeiro é incontornável. E o que vem depois é o retorno à moeda de base, não flutuante, aos ratos. Só assim haverá futuro. Um presente lá na frente.

Pois bem. Cronenberg é um cara cismado. Os cenários, episódios e personagens de suas histórias brincam com o mesmo fetiche: a violência. Que, arrisco, deve ser também seu maior medo. Filme após filme, ele exorciza uma parte desta ameaça. A parte nominada. Desenha um círculo ao redor do que viu até ali e diz: isso é violência. Como isso não basta, logo vem outro filme: aqui também é violência. E é um deleite ver alguém perseguir seu objeto de fascínio e repulsa com tanta diligência.

Se é verdade o que diz Caetano Veloso, que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, então todos temos uma surpresinha nos aguardando dentro do quarto 101. E os demônios que Cronenberg encontra ali são irreproduzíveis em seus filmes. O medo em estado puro que não alcançamos. Porque pra escrever, pra falar, pra filmar, nomeamos. Apontamos o dedo, demarcamos o objeto ou a pessoa ou o sentimento. Como peças de museu. Cronenberg batiza seu medo. Seu pesadelo em vigília. Orwell também, sua distopia totalizante. Vivem, ambos, a catarse através da arte. Pra não precisar entrar no quarto de onde ninguém retorna. Pra não precisar matar, roubar, violar. O rato marca o fim e o recomeço. O último estágio do apocalipse. A fissura.

Há pouco tempo um amigo me perguntou por que sempre escrevo sobre memórias, por que volto no passado, falo das perdas. Significo meu presente através da recordação, pensei. A vida é uma sucessão de perdas e de pequenas mortes. E estes sepultamentos nos libertam. Vivemos o luto pra não virar pesar. Fazemos das memórias um presente. Elaborando pra entender, articulando pra prosseguir.

Respondi a meu amigo que não sei falar sobre hoje, sobre o amanhã, porque ainda não deu tempo de entender, de digerir. Porque “a vida é muito contemporânea”, como disse a personagem de Juliette Binoche em “Cosmópolis”. E eu acho que concordo. Não alcanço o presente. Sempre me escapa. Quem sabe não é ele que me aguarda no quarto 101. Nestas histórias, ele vem após os ratos. O meu rato já veio, já emoldurei. Talvez eu esteja próxima, então. E o presente não ficará mais povoado pelo passado, nem apressado pelo futuro. É tempo de criar algo novo.

Carnavalesco na Place de la République, em Paris (fevereiro de 2010), by Maria Bitarello