Você tem medo de quê?

Outro dia um amigo me disse o seguinte: “Meu instinto é classe média”. Ou seja, quando o bicho pega, os sistemas de defesa do seu corpo e mente o levam pro lugar que ele conhece como seguro – e ele não parecia satisfeito com essa constatação. Ele queria dizer que, por exemplo, tem medo das ruas da cidade à noite, que tem o instinto de atravessar pra calçada mais iluminada, que logo quer pegar um táxi e, também, outro exemplo, que quando a vida fica muito incerta suas defesas logo acionam o alerta que pisca em letreiros luminosos dizendo “arrume um emprego!”, tenha carteira de trabalho assinada, compre a casa própria, tenha 13o, declare o Imposto de Renda, garanta sua aposentadoria e plano de saúde privado. E, no entanto, ao mesmo tempo, ele sabe que nada disso importa tanto assim – e não digo isso por causa da reforma trabalhista do apocalipse. É porque o buraco é mais embaixo mesmo.

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Iya Shango

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« Todo tempo é susceptível de virar um tempo sagrado;
a todo momento, a duração pode ser transmudada em eternidade. »
« In illo tempore, nos tempos míticos, tudo era possível. »
Mircea Eliade

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A repetição do cotidiano, massacrante a princípio, sublima, pelo cansaço, seus agentes. Gestos e saudações que repetem, ao infinito, o ato criador, a origem da aldeia, da tribo, do mundo. Aldeia : centro do mundo. No ato de cozinhar, de cantar, de reverenciar está sempre, por detrás, o gesto original e criador : o gesto mesmo do divino, que se atualiza no presente através do homem, trazendo o tempo sagrado, o tempo do mito para o tempo profano a qualquer momento, sem aviso, sem censura. Não é só no rito que o tempo sagrado se regenera, mas todos os dias, de novo, e de novo, e de novo.

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As crianças, assim que saem das costas das mães, andam em bando, uma comunidade de infantes que garantem eles próprios seus cuidados. A princípio nus, depois vestidos; primeiro dormindo nas costas da mãe, depois na da irmã ou prima ou vizinha ou nenhuma delas, por fim andando, correndo. As mulheres estão sempre a trabalhar, costas arqueadas em direção ao chão, na limpeza, na cozinha, incessantes e incansáveis provedoras que buscam água, acendem o fogo. Os homens agraciam-se, uns aos outros, com o carinho e o toque que não se vê entre um homem e uma mulher, um homem e suas mulheres. Observam, da sombra. Homens que são.

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Na perfeita ordem do universo, que do caos de suas partículas restabelece o sentido, elimina o sobressalente, realinha os elementos. Caos, como um átomo visto de fora, elétrons a se chocarem, um centro nuclear inatingível, e a energia entre os dois. Alguns elétrons que são bombardeados para fora da unidade, nucléolos em explosão, convulsão, catarse. O som percussivo pulsa, bate, ataca, repele, seduz, conduz, alucina, sublima. Cala.

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Desfaz-se o centro, dissipa-se a energia. E de repente o caos parecia muito mais coreografado que a apatia que se segue, olhares que voltam-se uns para os outros, tambores silenciosos, corpos sem espasmos, poeira assentada, Céu e Terra desgarrados. A energia – puf! – sumiu, não está mais ali. Está em todo lugar, está em outro lugar. A vivência do divino é tão real quanto a terra vermelha embaixo das unhas. Vivência para uns, testemunho para outros. Como foi ontem e será amanhã, desde sempre, para sempre, como sempre, não se conta o tempo. Há quem esteja, mas aqui é.

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Kétou é o centro do mundo.

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Photographed in Kétou, Benin, in January 2009.

Photos by
Maria Bitarello and Fábio Nascimento.
Texto: Maria Bitarello
A film by Nuno Aires.
Sound by Camille Barrât.

Exhibition at Galérie Goutte de Terre,
in Paris, in the spring of 2011.