São Paulo, Novembro 2017.
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Coma o que te faz feliz
Meu pai cozinha muito bem. De origem italiana, comida pra ele tem que ser em abundância, com longo tempo de preparo – regada a cerveja no processo – e com carne. Se não tiver carne pra ele é lanche. E preparar uma refeição é sua maneira de demonstrar amor. Gosta de cozinhar em casa, na sua e na de amigos, cercado de pessoas queridas. Sempre adiando o fim da preparação, porque o preparo é que é o deleite, a sagração. A casa se enchendo de cheiros, a cozinha esquentando. E na hora de servir, ele próprio, muitas vezes, não come. Seu alimento é o afeto. Mas observa – e delicia-se e alimenta-se em observar – as primeiras bocadas dos convidados; filhas, amigos. E não o faz em silêncio, mas com expressões visuais e sonoras de prazer, pedindo comprovação verbal do gozo. Não te deixa sair da mesa sem repetir, e da casa, sem levar uma marmita pra mais tarde. Uma mistura de Minas, com Itália e com ele próprio. É uma tradição, mas também uma singularidade sua.
Para continuar lendo, veja a coluna no site Outras Palavras.
Mogol, o ninho da raposa amarela
A 33km de Ibitipoca, em Minas, está o arraial do Mogol. Antigamente, 15 casas eram habitadas, havia um bar. Hoje, 9 casas ainda abrigam famílias. A escola fechou. A igreja está de pé. Ela guarda as imagens dos santos que sobreviveram à queda da capela que havia no alto do Pico do Pião, dentro do Parque Estadual do Ibitipoca.
As casas vazias continuam lá.
Uma vez por mês, um médico visita o arraial. Pra fazer compras, as famílias esperam o ônibus para Lima Duarte, que sobe a cada 15 dias.
Os habitantes do Mogol têm um sotaque próprio; cantado. Gostoso que só.
Rita mudou-se pra lá há 37 anos, quando se casou com José.
“Aqui é o ninho da raposa amarela”, diz Rita.
Photos by Maria Bitarello
Canon AE-1 / Kodak Portra 400
Mogol / Ibitipoca MG – 2016
Lavar roupa todo dia, que alegria
Eu costumo dizer que “não gosto de ler” não é uma afirmação possível. É como “não gosto de comer” ou “não gosto de sexo”. Tem oferta pra todos os gostos, alguma coisa vai atiçar seu paladar. Da mesma maneira, sempre tem algum tipo de leitura que vai te cativar. Romances russos ou bula de remédio. Filosofia alemã ou classificados. Pornografia ou manual de videocassete. Algo ou alguém vai te interessar. Pois bem, creio que o mesmo vale para o serviço doméstico. E antes que os mais mimados e preguiçosos torçam o nariz, sugiro que ao menos tentem antes de negar. Alguma das tarefas envolvidas no cuidado da casa vai se revelar prazerosa pra você. E isso pode dizer algo a seu respeito.
Uma amiga minha, por exemplo, adora tirar pó. Ela tem uma disposição incansável para retirar todos os porta-retratos do móvel da sala, limpar livro por livro da biblioteca, passar óleo de peroba nas prateleiras e recolocar todos os bibelôs na estante. É admirável. Por outro lado, detesta cozinhar. Sua comida é boa, mas ela não acredita, tamanho o desgosto. Há quem goste de limpar as teclas do computador com um cotonete ou quem lave as cortinas a cada vez que sofre uma decepção. Com sorte, na sua casa os residentes terão aptidões distintas. Isso vai evitar conflitos e manter a harmonia. Vocês nunca vão brigar porque ninguém quer tirar o lixo. Na casa compartilhada da minha irmã, o acordo é que ela mata as aranhas e sua amiga, as baratas. Meu pai gosta de cozinhar as carnes, minha madrasta as guarnições e molhos. E por aí vai.
A beleza disso tudo (e cito minha irmã) é que o trabalho doméstico é infinito e renovável. Imaculado hoje; imundo semana que vem. Nunca faltará o que fazer num momento de procrastinação. Aqui em São Paulo dizem “varzear”, o que achei muito apropriado. Quando algo de extremamente importante precisar ser feito para o trabalho, chegará, enfim, o grande momento de esvaziar aquele guarda-roupa entulhado de malas e caixas de papelão. Somente na hora H da entrega de um documento urgente aceitaremos encarar a pilha de contas jogadas na gaveta pra triar e jogar fora o que não prestar mais. E quando estivermos quase à porta, saindo atrasados, decidiremos consertar o pé daquela mesa empenada. O serviço doméstico nunca vai te deixar na mão. Conte com ele.
Além disso, ele é democrático. Seu talento, imaginemos, pode residir em resolver pepinos na fiação elétrica, desentupir privadas, comparecer às reuniões de condomínio ou brigar com a provedora de internet pelo telefone. Tenho clareza e convicção de que estes não são os meus, mas precisamos de habilidades complementares pra formar um time, não é mesmo? Eu sempre gostei de mexer com água. Lavar louça, limpar o banheiro e cuidar da roupa suja são as minhas funções favoritas. A louça aqui em casa, aliás, foi a única tarefa que em algum momento gerou competição. Quando eu conto isso ninguém acredita, mas é verdade. Sobretudo ao acordar. Deixávamos acumular a louça da noite anterior, propositalmente, pra contar com a repetição mecânica e meditativa do ensaboar e enxaguar na manhã seguinte. Na sonolência matinal, essa tarefa cai como uma luva. Ajuda o cérebro a pegar no tranco.
O que não suporto é aspirador de pó. Detesto. O barulho me deixa aflita e não vejo a hora de acabar pra poder desligá-lo. Acabo fazendo malfeito. Me lembro de um trecho do livro de Amélie Nothomb chamado “Metafísica dos Tubos” em que ela diz o seguinte: “L’aspirateur: Il y avait un miracle. L’appareil avalait les réalités matérielles qu’il rencontrait et ils les transformait en inexistence. Il remplaçait le quelque chose par le rien: cette substitution ne pouvait être qu’œuvre divine.” (O aspirador: era um milagre. O aparelho engolia realidades materiais que encontrava e as transformava em inexistência. Substituía alguma coisa pelo nada: essa substituição só poderia ser obra divina). Divino ou satânico, o aspirador leva junto a minha paciência e meu bom humor. Pretendo viver toda uma vida usando a vassoura.
A verdade é que tenho pra mim que poucas coisas revigoram o espírito e limpam a cabeça como uma bela faxina. Na casa toda. Têm dias pra todos os gostos, está claro. Uns são melhor quando diluídos. Uma tarefa por dia. Hoje a roupa suja; amanhã o banheiro; depois as janelas. Mas um domingo de ressaca é o momento ideal pra deixar desabrochar a Amélia que existe dentro de todos nós. Após a jornada, estamos cansados, sujos e purificados. E tomamos o banho redentor com a casa cheirosa e o banheiro brilhando. Acendo até um incenso no final. Insisto que vale uma tentativa antes de contratar uma faxineira.
A mais prazerosa e popular das tarefas é cozinhar. Mesmo quem não gosta de faxina pode ter tino pra comida. Na casa de um amigo tem um quadro pendurado ao lado da geladeira que diz assim: “A cozinha é o lugar mais fascinante da casa, o mais coletivo. Um espaço que reúne sobrevivência, prazer, refinamento e civilização”. Está lá em Minas. Se um mineiro visitar seu lar, não vai comentar seu sofá novo ou a pintura na parede do quarto com tanto entusiasmo como opinar sobre a cozinha. Pequena ou grande. Bem ou mal iluminada. Arejada. Boa pra receber os amigos. E é ali que passará a maior parte do tempo. Não adianta. Já tentei levar os convidados pra sala. Várias vezes. Eles sempre voltam pra cozinha, magnetizados. Dispõem-se ao redor do fogão, cervejas apoiadas na máquina de lavar roupas. Melhor aceitar.
E eu bem que gosto. Pra quem está no comando das panelas, é bom ter companhia humana e alcóolica. Mistura da mineira e da italiana que há em mim, adoro dar de comer aos amigos. Mistura de neurótica com procrastinadora, na manhã seguinte vou limpar tudo, pra curar a ressaca, exorcizar os demônios e evitar algo mais importante. Procastinare lusitanum est.