Petit Santôs

Semana passada, voei pela primeira vez na Emirates Airlines, o George V da aviação. A nécessaire de bordo traz amostras da Bulgari. Pode-se usar o iPhone durante o voo. O cockpit-assento-cama tem colchonete para amaciar o sono e a vida, aberto em 180 graus completos. As refeições são servidas em louça. A bebida é liberada. Os comissários adoráveis. O teto é mais alto, e o piloto, exímio. Só não pode fumar. Nunca fui tão bem tratada no ar, quiçá na terra. Foram 14 horas de voo até Dubai; 12 de sono. Eu já vinha pensando em escrever sobre o aviador mineiro, diante da data comemorativa de 106 anos do voo do 14-bis. E as coincidências me levaram à Índia, de Emirates, justo a tempo.

No dia 23 de outubro de 1906, Santos Dumont realizou o primeiro voo público da história em um objeto mais pesado que o ar com propulsão própria. Ou seja, decolou e pousou por meios próprios; não foi um salto de asa-delta/planador, foi realmente uma decolagem. Ele fez isso no Campo de Bagatelle, em Paris. Foi um voo curtinho. Ele percorreu 60m em 7 segundos, a 2 metros de altura do solo, numa geringonça de 290kg com motorzinho de 5 cavalos.  Levou 3 mil francos, na época. Fez história.

Santos Dumont era mineiro. De uma cidade ao lado da minha. Hoje o lugar leva seu nome e a casa onde ele nasceu – e que mais tarde veio a comprar – é o Museu do Cabangu. Nasceu ali, mas cresceu no interior de São Paulo e passou grande parte da vida adulta em Paris. Quando abandonou a aviação, desgostoso, voltou para o Brasil e comprou a propriedade mineira, onde começou a criar gado holandês. E no fim, morreu em Guarujá, três dias após seu aniversário de 59 anos. Não viu a guerra. Nem a luftwaffe, os mísseis, a Endeavor e muito menos a Emirates. Cabeça aberta e curioso quando jovem, apaixonado pelas descobertas, Santos Dumont  com o tempo virou um recluso, amargurou-se. Suspeito que não gostaria do spa aéreo em que se transformou a aviação de luxo. Seu interesse pelas aeronaves talvez acabasse ali com os B-52’s. Vai saber.

Em 2006, colaborei com a pesquisa e redação do livro Santos Dumont: retorno às origens – A vida do pai da aviação em sua terra natal, de Isabel Pequeno e Sergio Bara, grandes amigos e colegas de trabalho. Um apanhado de fotografias, cartas, objetos pessoais e relatos até então inéditos, cujos cuidados estão nas mãos da Fundação Casa de Cabangu, detentora de um rico acervo.

Entregue as últimas páginas do livro e ainda naquele mesmo ano do centenário do infame voo do 14-bis, fui a Paris. Era minha primeira vez. E fui pautada para escrever uma matéria sobre a data do 23 de outubro. Virou um roteiro de viagem à Paris do petit Santôs. Texto e imagens contrapunham a cidade de então com a de hoje, de maneira biográfica. O Campo de Bagatelle; o Musée de l’Air et de l’Espace no Aéroport du Bourget – onde está a réplica do simpático aviãozinho e de outros modelos, como a Demoiselle –; a Villa Santos Dumont; o edifício onde ele viveu no 17ème arrondissement; o hotel atrás da Torre Eiffel, onde caiu com seu dirigível; a Maison Cartier, na Champs-Élysées, onde ainda residem amostras de uma edição limitada do relógio de pulso desenhado sob encomenda pela grife para o aviador. O primeiro relógio de pulso da história. São muitas as histórias.

A matéria saiu, mas Paris ficou. Ainda voltei muitas vezes, até me mudar pra lá. Hoje a cidade é outra no meu imaginário; o carinho é maior. No entanto, fica sempre uma lembrança bonita daquela primeira vez, daquele primeiro amor, da descoberta de suas esquinas enviesadas com a aviação mineira. Atenta às coincidências e ao acaso, foi numa dessas que fui parar na casa de mais um mineiro em Paris, que me acolheu e me fotografou. Sua família era de Santos Dumont. Não pude ignorar. Chamei-o pra pauta e ele aceitou.

Entrou pra matéria e pra minha vida. Porque o sentido das coisas somos nós que atribuímos. Sinais só existem quando percebidos. Para ganharem vida, devem ligar-se às pessoas e a suas histórias. Só assim cabe, numa mesma crônica, a Índia, a Emirates e a Paris de Santos Dumont.

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Perdidos em Bois de Boulogne, Paris (2006), by Maria Bitarello

 

Saudades do Aeroporto da Serrinha

Adoro turbulências durante o voo. O trepidar lembra um ônibus da Cometa e aumenta minhas chances de adormecer a bordo. Já que voar é entediante e incômodo, aceito todas as formas de torná-lo mais interessante. Ali onde uns sentem medo, eu sinto presença de vida. Que venham as turbulências. E em meu histórico aeronáutico, o voo mais interessante que já tomei foi o Paris-Cotonou, no Benim, com escala em Trípoli, na Líbia, pela Afriqiyah Airways. Não pelas turbulências. Os comissários de bordo fumavam ao lado do banheiro, durante o voo, por exemplo. Os passageiros também fumavam, ao desembarque, antes mesmo de deixarmos aquele tubo que conecta a aeronave ao prédio. No Aeroporto Internacional de Cotonou, o desembarque acontece na pista, e as malas são levadas, lado a lado conosco, até o saguão interno, onde são manualmente colocadas sobre a esteira. Um lugar onde ainda sobra espaço para a acomodação e acordo pessoal.

Para entrar no país, o governo do Benim pede um visto e a cartela de vacinação carimbada no campo “febre amarela”, e eu tinha ambos. Mas, que mancada, esqueci a cartela em Paris e avisei ao oficial de saúde que veio pedi-la, vestido com um jaleco branco, semiaberto, sem camiseta por baixo, e com uma máscara de cirurgião em volta do pescoço. Ele me levou até uma salinha e fechou a porta. “Quando vencia a vacina?”, perguntou, sentando-se à mesa vazia. “Ano que vem”, me expliquei, “tomei faz quase dez anos, mas ainda está valendo.” Ele dispensou meu comentário e seguiu com outra pergunta naquele simpático francês com sotaque africano. “Era só contra febre amarela?”. “Era”, respondi. Ele acenou com a cabeça para a cadeira ao lado, onde me sentei, e tirou uma cartela novinha da gaveta. Preencheu-a com os dados do meu passaporte, carimbou-a com o selo oficial do Ministério da Saúde local e me pediu 10 euros. Eu paguei.

Este prólogo foi só pra contextualizar minha memória desse voo e desse aeroporto, porque pensei neles na semana passada quando cheguei em Juiz de Fora, Minas Gerais, de avião. Foi a primeira vez na vida que aterrissei no Aeroporto da Serrinha, ou Francisco Álvares de Assis, até recentemente o único da minha cidade natal. Foi também meu primeiro voo num avião com asas acima das janelas, desses que vemos em filmes com Humphrey Bogart e Audrey Hepburn. Muito estáveis, aliás.  O Aeroporto da Serrinha é uma simpatia. É tão pequeno que faz pouco separaram a área de embarque da de desembarque. Os funcionários do check-in são os mesmo que buscam nossas malas no avião e alguns amigos meus viraram pilotos treinados ali, no aeroclube.

Quando eu era criança, frequentava o restaurante anexo com minha família por causa do parquinho. Isso antes de eu andar num avião na vida. Uma grade móvel, dessas que vemos na frente de palcos de shows em exposições agropecuárias, separava o parquinho da pista de pouso.  E os voos panorâmicos de teco-teco até hoje são uma opção legal para os amigos que visitam pela primeira vez a região, pois de cima vemos o mar de morros que abraça a cidade e se estende ao horizonte. É bonito.

O voo do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, ao Aeroporto da Serrinha foi lindo. Gostei muito. Foi só na manhã seguinte que fiquei sabendo do acidente que matou oito pessoas ali ao lado. Conheço muitas pessoas que vivem na região. Meu próprio avô deixou terrenos de herança aos quatro filhos, dentre eles minha mãe, logo depois do morro, da colina, onde fica a curta pista de pouso do Serrinha. O local é famoso pela serração baixa e pela má visibilidade, e o pequeno avião nem atingiu a pista, caindo dentro da pousada da família de um amigo meu, local que eu frequentei, semanalmente, por algum tempo. Nossa banda, duplodeck, ensaiava ali, num quartinho anexo à pousada, todos os sábados à tarde. Os aviões que passavam rasantes para pousar eram frequentes, e a vibração que provocavam era, por vezes, grande. A quadra de futebol era ponto de encontro dos “caras” da faculdade terças à noite e o caramanchão, a 200m da curta pista e arrancado do chão pelo bimotor acidentado, foi altar de casamentos de amigos.

O acidente me deixou pensando nessas coincidências e nas minhas memórias associadas ao Aeroporto da Serrinha quando decolei, dois dias depois, de volta para São Paulo. É um daqueles lugares onde o “sistemão” do mundo ainda não chegou direito. Existe um elemento orgânico, onde o caso-a-caso ainda impera e que, pensado dentro de nosso cotidiano corporativizado, faz dele um oásis de bom senso, como o voo da Afriqiyah Airways para o Benim. Onde ainda vemos os indivíduos e as exceções cabem na regra.

Lembrei dos amigos pilotos, voos panorâmicos, ensaios ao som de decolagem, parquinho com minha irmã e, sobretudo, na fotografia que tirei ali no meio da pista, aos 7 anos quase completos, ao lado do então candidato à presidência da república, Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 1989. Essa fotografia ainda decora a casa da minha família e a dos pais de uma amiga de infância: nela, nós duas, penduradas no pescoço do ex-presidente. Ela está ao lado de outra, também tirada ali, agora em setembro de 1998, quando nós duas compactuamos com os seguranças do aeroporto e líderes do PT, que tentavam evitar que a multidão de eleitores invadissem o pequeno saguão. Atravessamos a brecha na porta e na vida e nos precipitamos em meio aos flashs dos fotojornalistas, onde empunhamos a foto de 1989, a marca própria da passagem do tempo, e ladeamos o candidato Lula, à espera dos cliques. Demorou mas conseguimos cópias da foto que saiu, enorme, no Estado de Minas.

Quatorze anos depois deste dia, Lula já teve dois mandatos e não é mais presidente; os integrantes da banda que tocava todos os sábados se espalharam por aí e agora se reúnem de vez em quando para brincar num estúdio mais equipado e no mesmo local; o parquinho, acho que não existe mais, embora as grades tenham melhorado; e a foto emoldurada daquela amizade de infância e adolescência fala de uma saudade que não passa.

Têm dias que são assim. De sossego na turbulência.

(Acervo pessoal)