Arnaldo e Rita

 

 

 

 

Já faz uns anos, tive um sonho com a Rita Lee. Minha memória de sonhos é ruim, e só tenho fragmentos. Mas recordo-me de encontrar a cantora na fila de um banheiro, em 1963, num show de Jorge Benjor. Era o lançamento do “Samba Esquema Novo”. Ela ainda era loirinha, sardenta, menina. Eu a reconhecia e me precipitava em sua direção. Não me lembro se ela me conhecia ou não, acho que não. Eu lhe disse, na fila do banheiro, que embora ainda não soubesse, ela seria integrante de uma das bandas mais importantes e incríveis do mundo, ao menos do meu. Que eles tocariam em toda parte, que eles revolucionariam o rock nacional e que dali a alguns anos eles gravariam a música que o Jorge Benjor estava tocando lá fora: “Minha menina”. O álbum de ‘63 é o meu favorito do cantor. E a primeira fase d’Os Mutantes, de 1967, com Ritinha de noivinha, é sem dúvida a que eu acho melhor.

 

Fim de ano me lembrei deles. A Rita faz aniversário dia 31 de dezembro. E nesse mesmo dia, no ano de 1982, Arnaldo Baptista, seu ex-marido e ex-parceiro musical, tentou acabar com a própria vida, sem sucesso. Eu tinha um mês de vida, e nos cruzamos no meio do caminho. Foi um começo para nós dois.

 

Arnaldo teve uma sobrevivência miraculosa. Um momento em que vida não só falou mais alto; ela gritou. Foi uma aposta. E ele foi parar em Juiz de Fora uns anos depois do incidente. Ele e sua “menina”, Lucinha Barbosa, sua companheira há 30 anos. E lá, em minha cidade natal, o velho mutante é figura não raro avistada. No cinema. Em exposições. Caminhando em parques. Vive num sítio perto da casa da minha mãe. Seus quadros são expostos na cidade; suas camisetas, pintadas à mão, vendidas localmente. Eu hoje vivo na cidade natal do Arnaldo, São Paulo, mas só o vejo na terrinha mineira. Nosso ponto de encontro habitual é a praça do bairro, onde nós dois temos uma preferência por caminhar. Ele e sua menina estão sempre lá, sempre juntos. Às vezes nos falamos, nós três.

 

Em 2007, o vi em cena pela primeira e última vez. Foi no show d’Os Mutantes, no Rio, que cobri para o jornal local no qual trabalhava na época. Da plateia, um coro de dez ou vinte de nós, mineiros, gritava “graminha, graminha, graminha”, que não é um viva à maconha, mas o nome do bairro onde ele reside em Juiz de Fora. Ele sorriu como criança. E nós também. Tive a oportunidade de entrevistá-lo, tiramos fotos juntos. Ganhei uma camiseta.

 

Fantasio que meu sonho foi uma forma de intervenção no curso dos acontecimentos. Se eu não tivesse contado à Rita – na fila daquele banheiro onírico, 19 anos antes do meu nascimento – que eles gravariam “Minha menina”, do Benjor, será que eles teriam ainda assim gravado a canção? Será que nos anos 2000 minha banda mineira, duplodeck, faria um cover dessa música – cover, por sua vez, inspirado pela apresentação do Belle and Sebastian no extinto Free Jazz Festival, de 2001, já que a banda escocesa também fez sua versão da baladinha distorcida? Será que o Arnaldo chamaria a Lucinha de “minha menina”, como o faz, carinhosamente? Será? Menina ou não menina? Eis a questão. Por que será que foi esse meu único comentário feito à Rita Lee na fila daquele banheiro sessentista? Não tenho as respostas.

 

Se Arnaldo não tivesse quase morrido em 1982, quando eu nasci, talvez ele já não estivesse mais entre nós. Sua quase morte foi um recomeço. Quando penso no Arnaldo e na Rita, nesse amor e nessa arte – e também na dor e na ruptura –, quem me vem à mente é Lucinha. A menina. Talvez a mesma da música do Benjor.

 

Talvez fosse ela a menina do sonho sobre a qual eu falava à Rita no banheiro do show.

Arnaldo 4

Arnaldo Baptista e Maria Bitarello @ vernissage no Janelas Verdes, Juiz de Fora-MG, Brasil – janeiro de 2006

Dia de Finados

“Você morreu pra mim. Nunca mais quero te ver.” Queima-se cartas, rasga-se fotos, apaga-se mensagens de celular e email, muda-se de amigos. Enterramos o outro em vida. Encerramos um amor ou uma amizade. A paixão adolescente é dramática, e sofrida é a primeira perda. “Como será possível a vida continuar sem você”, esbravejamos, mão contra o peito, “sobretudo porque você está vivo? Sua vida continua, só não é mais comigo.” A dor é muito grande; a incompreensão e frustração, maiores. E delas tiramos aprendizado.

É Finados. Dia dos Mortos. Aqueles que a vida tira de nós. É dia dos vivos lembrarem-se deles. Quando eu era criança, achava a cerimônia de morte demasiado mórbida. Velar o corpo era uma tara que eu não pretendia partilhar. Isso muito antes de entender o luto. E, sobretudo, que trata-se de um ritual para os vivos. Para seguirmos adiante sem arrastar um caixão desajeitado vida afora. Sem assombração nem nada. Porque ao contrário do que nos dizem na infância, a morte não vem apenas no fim. Acontece o tempo todo. Ao nosso redor, dentro de casa. Em nós mesmos. A vida toda.

Proponho, portanto, que hoje lembremos também daqueles que extirpamos da nossa vida sem óbito. Pela separação. Para que nos lembremos mesmo depois que não recordarmos mais os detalhes do rosto. Pois “eliminar os mortos da memória não é possível. O passado está cheio de mortos, mas aqui estou eu a continuar a lhes dar vida. Quem é que se pode separar disso?”. A frase é de José Saramago, que também diz que o passado não passa, acumula. Empilhado sobre o presente. Nesta pilha, enfileiram-se os sepultamentos póstumos e também as mortes em vida.

Gostaria, ainda, de evocar um terceiro tipo de defunto. Da categoria Lance Armstrong. Que não foi tirado de nós e que nós não afastamos voluntariamente. É a História que apaga seu traço; eis sua condenação. O morto-vivo punido com o esquecimento. O ostracismo. Todos os grandes – nos esportes, nas artes, nas ciências – buscam a imortalidade. Sua perpetuação. Tirá-la é uma forma de punição customizada das mais perversas. Falei sobre isso em outro artigo nessa coluna, lembrando “1984”, de George Orwell.

E a primeira coisa em que pensei quando soube do afastamento de Armstrong foi justamente Orwell. “Não estamos mais em guerra com a Eurásia; na verdade, nunca estivemos”. Lobotomia ideológica em “1984”. A cada reviravolta na política, apagam-se os arquivos de jornal. Deleta-se do cotidiano todo e qualquer vestígio. Uma verdade que nunca houvera, da qual se duvida e que aos poucos vira uma mentira.

O ciclista americano vai “sair” da História como o farsante que teve seu mandato esportivo caçado. Não será esquecido por completo, mas, em 100 anos, será um rosto desbotado. Ele, antigo detentor dos impressionantes 7 títulos na Tour de France, em sequência. Com o passar das gerações, seu nome – apagado do panteão do esporte – deixará de ser dito. Seu doping não será usado como exemplo. Uma decisão judicial que hoje custa mais a nós, seu público, sobre quem pesa a incumbência do esquecimento. Forçados por lei a enterrar sua glória.

Sempre dizem que “a vida continua”, mas a vida sempre acaba. É a morte que continua, para sempre. E enquanto estivermos por aqui, levamos nossos mortos conosco, pelas mãos. Há os que, diante disso, prefiram tirar as perdas de vista. Maquiar a ausência onipresente. E há os que prefiram ver para exorcizar. Fitar o corpo. No meio dos dois, com tempo e paciência, existe outro lugar. Onde lembramos para seguir adiante. Onde há dor, não sofrimento. As saudades não passam mesmo. Mas mudam.

Nesse Finados, portanto, penso nos vivos. Pois não há aceitação no esquecimento. Penso em quem recorda. Em quem se separou em vida. Em Lance Armstrong. E se uma criança me perguntar, amanhã, quem foi o ciclista, não vou repreendê-la. Não vou sussurrar baixinho. Muito menos prometer contar a verdade quando ela tiver idade. O americano é um memorial vivo, erguido em praça pública. Não nos deixa esquecer. Nos ajuda a prosseguir de mãos dadas com nossa história, os olhos abertos. Que façamos uso dele.

Jardin du Coq, Clermont-Ferrand, França (2010), by Maria Bitarello

Saudades do Aeroporto da Serrinha

Adoro turbulências durante o voo. O trepidar lembra um ônibus da Cometa e aumenta minhas chances de adormecer a bordo. Já que voar é entediante e incômodo, aceito todas as formas de torná-lo mais interessante. Ali onde uns sentem medo, eu sinto presença de vida. Que venham as turbulências. E em meu histórico aeronáutico, o voo mais interessante que já tomei foi o Paris-Cotonou, no Benim, com escala em Trípoli, na Líbia, pela Afriqiyah Airways. Não pelas turbulências. Os comissários de bordo fumavam ao lado do banheiro, durante o voo, por exemplo. Os passageiros também fumavam, ao desembarque, antes mesmo de deixarmos aquele tubo que conecta a aeronave ao prédio. No Aeroporto Internacional de Cotonou, o desembarque acontece na pista, e as malas são levadas, lado a lado conosco, até o saguão interno, onde são manualmente colocadas sobre a esteira. Um lugar onde ainda sobra espaço para a acomodação e acordo pessoal.

Para entrar no país, o governo do Benim pede um visto e a cartela de vacinação carimbada no campo “febre amarela”, e eu tinha ambos. Mas, que mancada, esqueci a cartela em Paris e avisei ao oficial de saúde que veio pedi-la, vestido com um jaleco branco, semiaberto, sem camiseta por baixo, e com uma máscara de cirurgião em volta do pescoço. Ele me levou até uma salinha e fechou a porta. “Quando vencia a vacina?”, perguntou, sentando-se à mesa vazia. “Ano que vem”, me expliquei, “tomei faz quase dez anos, mas ainda está valendo.” Ele dispensou meu comentário e seguiu com outra pergunta naquele simpático francês com sotaque africano. “Era só contra febre amarela?”. “Era”, respondi. Ele acenou com a cabeça para a cadeira ao lado, onde me sentei, e tirou uma cartela novinha da gaveta. Preencheu-a com os dados do meu passaporte, carimbou-a com o selo oficial do Ministério da Saúde local e me pediu 10 euros. Eu paguei.

Este prólogo foi só pra contextualizar minha memória desse voo e desse aeroporto, porque pensei neles na semana passada quando cheguei em Juiz de Fora, Minas Gerais, de avião. Foi a primeira vez na vida que aterrissei no Aeroporto da Serrinha, ou Francisco Álvares de Assis, até recentemente o único da minha cidade natal. Foi também meu primeiro voo num avião com asas acima das janelas, desses que vemos em filmes com Humphrey Bogart e Audrey Hepburn. Muito estáveis, aliás.  O Aeroporto da Serrinha é uma simpatia. É tão pequeno que faz pouco separaram a área de embarque da de desembarque. Os funcionários do check-in são os mesmo que buscam nossas malas no avião e alguns amigos meus viraram pilotos treinados ali, no aeroclube.

Quando eu era criança, frequentava o restaurante anexo com minha família por causa do parquinho. Isso antes de eu andar num avião na vida. Uma grade móvel, dessas que vemos na frente de palcos de shows em exposições agropecuárias, separava o parquinho da pista de pouso.  E os voos panorâmicos de teco-teco até hoje são uma opção legal para os amigos que visitam pela primeira vez a região, pois de cima vemos o mar de morros que abraça a cidade e se estende ao horizonte. É bonito.

O voo do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, ao Aeroporto da Serrinha foi lindo. Gostei muito. Foi só na manhã seguinte que fiquei sabendo do acidente que matou oito pessoas ali ao lado. Conheço muitas pessoas que vivem na região. Meu próprio avô deixou terrenos de herança aos quatro filhos, dentre eles minha mãe, logo depois do morro, da colina, onde fica a curta pista de pouso do Serrinha. O local é famoso pela serração baixa e pela má visibilidade, e o pequeno avião nem atingiu a pista, caindo dentro da pousada da família de um amigo meu, local que eu frequentei, semanalmente, por algum tempo. Nossa banda, duplodeck, ensaiava ali, num quartinho anexo à pousada, todos os sábados à tarde. Os aviões que passavam rasantes para pousar eram frequentes, e a vibração que provocavam era, por vezes, grande. A quadra de futebol era ponto de encontro dos “caras” da faculdade terças à noite e o caramanchão, a 200m da curta pista e arrancado do chão pelo bimotor acidentado, foi altar de casamentos de amigos.

O acidente me deixou pensando nessas coincidências e nas minhas memórias associadas ao Aeroporto da Serrinha quando decolei, dois dias depois, de volta para São Paulo. É um daqueles lugares onde o “sistemão” do mundo ainda não chegou direito. Existe um elemento orgânico, onde o caso-a-caso ainda impera e que, pensado dentro de nosso cotidiano corporativizado, faz dele um oásis de bom senso, como o voo da Afriqiyah Airways para o Benim. Onde ainda vemos os indivíduos e as exceções cabem na regra.

Lembrei dos amigos pilotos, voos panorâmicos, ensaios ao som de decolagem, parquinho com minha irmã e, sobretudo, na fotografia que tirei ali no meio da pista, aos 7 anos quase completos, ao lado do então candidato à presidência da república, Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 1989. Essa fotografia ainda decora a casa da minha família e a dos pais de uma amiga de infância: nela, nós duas, penduradas no pescoço do ex-presidente. Ela está ao lado de outra, também tirada ali, agora em setembro de 1998, quando nós duas compactuamos com os seguranças do aeroporto e líderes do PT, que tentavam evitar que a multidão de eleitores invadissem o pequeno saguão. Atravessamos a brecha na porta e na vida e nos precipitamos em meio aos flashs dos fotojornalistas, onde empunhamos a foto de 1989, a marca própria da passagem do tempo, e ladeamos o candidato Lula, à espera dos cliques. Demorou mas conseguimos cópias da foto que saiu, enorme, no Estado de Minas.

Quatorze anos depois deste dia, Lula já teve dois mandatos e não é mais presidente; os integrantes da banda que tocava todos os sábados se espalharam por aí e agora se reúnem de vez em quando para brincar num estúdio mais equipado e no mesmo local; o parquinho, acho que não existe mais, embora as grades tenham melhorado; e a foto emoldurada daquela amizade de infância e adolescência fala de uma saudade que não passa.

Têm dias que são assim. De sossego na turbulência.

(Acervo pessoal)

Por acaso, o passado…

Se pensarmos a velhice como a constante presença do passado, e a infância como a estrita projeção do futuro, a vida deve ser o que acontece no meio, entre estas duas esperas; uma perda dos sonhos e um acúmulo sempre progressivo de memórias. O poeta mineiro, Murilo Mendes, tem uma frase em que diz que “a memória é uma construção do futuro, mais que do passado”, e a considero bastante pertinente se aplicada à leitura da peça de André Resende, Maçã caramelada, publicada pela Editora Cubzac (em uma edição digna de ser adquirida).

No texto – curto e pontual –, Eusébio, Greta e Adílio fazem de um encontro, ao acaso, em uma antiga emissora de TV, uma reconstrução do passado e uma recriação para o futuro. A partir do acervo da emissora, que está prestes a se perder, estes três personagens paradigmáticos pensam, conversam a respeito e nos fazem pensar – nós, os leitores – sobre a persistência da memória, o legado a que damos continuidade e que seguirá quando já não mais aqui estivermos, o mal-estar provocado por nossas escolhas e consequentes renúncias que implicam e o papel que o acaso, que a coincidência, tem em nossos encontros e trombadas entre a infância e a velhice, inclusive (e sobretudo) este que ocorre entre os três e que conduz Maçã caramelada.

Adílio, em busca das projeções da infância, nos obriga a repensar a construção da memória e se em nossas estórias existiu algum dia – ou existirá – a História, ou se não passam todas de interpretações, passíveis de cair nas peças em que nos prega a memória, tão esquecida e tão passível de criatividade espontânea, recriando-se. Seria por isso menos válida?

Greta personifica nosso mal-estar contemporâneo, nossa vertigem de possibilidades, a eterna indagação inútil sobre o caminho que não seguimos, as escolhas que não fizemos e a ansiedade que emerge de sua irrealização material, porém acompanhada de sua existência vívida em nossas projeções do que seriam memórias de um fato irrealizado. Reflexo e modelo do que passamos todos nós, homens e mulheres pós-modernos.

Eusébio amarra os dois extremos, o arrependimento e a insaciedade, a projeção e a nostalgia, em um personagem ciente de que “sem registrar os momentos da vida, o passado fica mais difícil de lembrar”, mas tampouco caindo na tentação de acreditar que “porque existe não quer dizer que é eterno”. E, acima de tudo, prezando e pregando o poder da coincidência, “a única coisa em que [conseguiu] acreditar e entender como possível”, “algo revelador das oportunidades que estão em nossa volta”, pois, justamente por “parecer acasos […], revelam um mundo desconhecido que, no entanto, não estava perdido, muito menos era inexistente”.

A chave

Tenho para mim que a chave está em Zaldok. O personagem que nunca sabemos ao certo se existiu, e muito menos quem foi, é uma pessoa distinta na memória de cada um, às vezes mais que um para uma mesma pessoa. Zaldok, personagem associado a valores mágicos de nossa infância, não envelheceu, não morreu, e tem acesso ao lugar onde nossa entrada não é permitida: o futuro.

Se para Eusébio “depois daquela maçã caramelada, tudo foi sorte na vida”, o autor nos diz também que, sim, ele, como nós, entende e sente a angústia da escolha, o medo do esquecimento, a preocupação com a memória no futuro, mas, acima disso tudo, está nos dizendo, nas palavras de Eusébio, que “[aceitemos] as coincidências”, que façamos do passado uma criação dinâmica no presente e uma reatualização no futuro, que deixemos as recordações museológicas de lado, pois não existe nossa História oficial. Seu (meu) passado está tão em transformação quanto o futuro, e aprisioná-lo no arquivo é privá-lo de vida, é assassiná-lo. A maçã caramelada é o presente de Eusébio a Adílio e Greta, é o presente de André Resende a nós.

 

* Esta resenha foi publicada no Le Monde Diplomathique Brasil de 13/03/2009.